No dia 04/03/2015, em cerimônia realizada às 10h, recebi o título de professora emérita da UnB, em cerimônia realizada no Auditório da Reitoria, quando proferi o discurso abaixo.
TEMPO DE RELEMBRAR E DE REFLETIR
A obtenção desse título me faz relembrar minha história com a UnB, que data da sua criação, em 1962, porque meu noivo à época, e depois marido há 52 anos, Márcio Villas Boas, se submeteu ao primeiro vestibular para arquitetura e, concluído o curso, dois anos depois, aqui ingressou como professor em 1968. Minha história com a UnB se confunde com minha história de vida.
Cheguei em Brasília em 1960 para integrar a primeira turma a fazer o Curso Normal completo na Escola Normal de Brasília. Este é um dos meus orgulhos. Faço parte do grupo de pioneiros em Brasília. Concluído o curso, imediatamente fiz concurso para a Fundação Educacional e me constitui professora de séries iniciais, outro dos meus orgulhos. Meu sonho era fazer o Curso de Pedagogia na UnB, mas tinha de trabalhar. Assim, fiz o primeiro vestibular do UniCeub e lá concluí o Curso de Pedagogia. Concluídos os cursos de mestrado e doutorado, chegou o momento de entrar na UnB como professora, o que aconteceu de quatro formas: em 1986, como requisitada do Governo do DF; em seguida, por meio do convênio entre a Fundação Educacional e a UnB; em 1993, como professora substituta e, finalmente, por concurso, em 1994. Como se pode perceber, passei por todas as formas de ingresso na instituição. Atualmente sou pesquisadora colaboradora.
Atuei na Secretaria de Educação do DF por 25 anos. Somando os anos de trabalho como cedida pelo Governo do DF, como professora substituta e como professora do quadro efetivo e, agora, como pesquisadora colaboradora, são 27 anos de dedicação à UnB, da qual me afastei por quatro anos para realizar o curso de doutorado.
Quando soube da indicação do meu nome para receber o título de professora emérita, duas inquietações surgiram. A primeira delas foi a seguinte: por quê? O que fiz para merecer título tão especial? Busquei no dicionário o significado da palavra emérito: muito versado em uma ciência ou arte; sábio, insigne. Eu sábia ou muito versada em algo? Não me considero assim. Prefiro entender que minha contribuição significativa se encontre no fato de, ao passar a atuar na Faculdade de Educação da UnB, eu não ter me afastado das escolas de educação básica, meu primeiro campo de atuação. Costumo brincar que tenho um pé na Educação Básica e o outro na UnB, buscando a necessária articulação entre ambas, uma vez que formamos professores para a educação infantil, ensino fundamental e médio. Aqui na universidade não podemos falar sobre a escola, mas conhecê-la em profundidade, trazê-la para cá e nos transferirmos para lá. Isso pode ser feito de várias formas: por meio de pesquisas, promovendo atividades de formação continuada de professores dentro da universidade, incluindo professores da educação básica em nossos grupos de pesquisa, realizando em conjunto atividades e eventos etc. A nossa criatividade, somada à dos colegas da educação básica, nos indicará os vários caminhos.
A segunda indagação decorre da primeira: o título de professora emérita faz parte do que se entende por meritocracia, prática que nós, comprometidos com a qualidade da educação, tanto combatemos? Fui buscar em Luiz Carlos de Freitas (Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação e sociedade, Campinas, v. 33, n.119, p. 370-404, abr./jun., 2012) a resposta para esta indagação. Citando Kane, J. e Staiger, D. O. ( The promise and pitfalls of using imprecise school accountability measures. Journal of Economic Perspectives, Nashville, v. 16, n. 4, p. 91-114, 2002), Freitas afirma que um sistema de responsabilização inclui três elementos: testes para os estudantes; divulgação pública do desempenho da escola; recompensas e sanções. O autor esclarece que não apenas as recompensas e sanções compõem o caráter meritocrático do sistema, já que a própria divulgação dos resultados da escola constitui em si mesma uma exposição pública que envolve alguma recompensa ou sanção pública.
A meritocracia está na base da proposta política liberal: igualdade de oportunidades e não de resultados, acrescenta Freitas. Para ela, a política liberal, dadas as oportunidades, o que faz a diferença entre as pessoas é o esforço de cada uma, isto é, o seu mérito. “Nada é dito sobre a igualdade de condições no ponto de partida. No caso da escola, diferenças sociais são transmutadas em diferenças de desempenho e o que passa a ser discutido é se a escola teve equidade ou não, se conseguiu ou não corrigir as ‘distorções’ de origem, e esta discussão tira de foco a questão da própria desigualdade social, base da construção da desigualdade de resultados” (FREITAS, 2012, p. 383).
Freitas considera que os efeitos da meritocracia, quando aplicada aos professores e às escolas, são questionáveis. Primeiro, porque penalizam exatamente os melhores professores por considerarem que sua motivação para trabalhar se restringe ao desejo de ganhar mais dinheiro, quando, na verdade, sem descartar este motivador, o que mais move o professor é o próprio desenvolvimento do aluno. Segundo, porque expõem todos os professores a sanções ou aprovações públicas, desmoralizando a categoria. Terceiro, porque são aplicados métodos de cálculo para identificar os melhores e os piores professores que são inconsistentes não só ao longo do tempo, como sob várias opções de modelos de análise. E, finalmente, porque os estudos mostram que a meritocracia não tem maiores impactos na melhoria do desempenho dos alunos e acarreta graves consequências para a educação” (p. 385).
A compreensão de Freitas sobre a meritocracia me aquietou. Não estou recebendo recompensa salarial pelo bom desempenho dos estudantes que comigo trabalharam. Como sou aposentada e na condição de pesquisadora colaboradora não recebo remuneração, este título não se configura como elemento de meritocracia porque não será motivador para eu ter meu salário aumentado. Tem o significado de motivar-me a continuar a dar as contribuições possíveis. No processo meritocrático há ganhadores e perdedores. Em educação temos de ter ganhadores sempre.
TEMPO DE RECONHECER
Como João Cabral de Melo Neto, reconheço que
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem e os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. |
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão. |
Este poema, que tem por título Tecendo a manhã, me possibilita reconhecer que não teci minha manhã sozinha. Precisei sempre da contribuição de outros galos, meus orientandos, estudantes das disciplinas que ofereci e colegas. Com esses galos construí o Grupo de Estudos e Pesquisa Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico, GEPA, cadastrado no CNPq, em funcionamento desde 2000. Com outros galos, os mediadores do Curso de Pedagogia para professores em exercício nas séries iniciais do ensino fundamental da Secretaria de Educação do DF, o PIE, introduzi o trabalho com o portfólio, tendo tido o apoio do saudoso Carlos Mota, meu orientando de mestrado e coordenador do processo avaliativo desse curso. Com todos esses galos introduzi na Faculdade de Educação da UnB e na Secretaria de Educação do DF a prática da avaliação formativa. Muitos fios de sol advindos dos gritos desses galos iluminaram a nossa manhã, comprometida com a conquista das aprendizagens por estudantes e professores. O nosso trabalho, inicialmente constituído por uma teia tênue, se encorpou em tela e construiu uma tenda que tem abrigado todos os comprometidos com a avaliação aliada da escola que desenvolva trabalho de qualidade social. Ninguém fica de fora. Assim iluminada, essa nossa manhã se irradia e se eleva em forma de luz balão. Esse balão que vem se erguendo é representado pelo trabalho que o GEPA vem difundindo no DF e em outras localidades do Brasil. O GEPA é outro dos meus orgulhos.
TEMPO DE AGRADECER
Chegou o momento de agradecer. Meus agradecimentos se dirigem primeiramente a quem sempre me acompanhou em todos os momentos da minha caminhada, os vitoriosos e os difíceis, estes últimos inúmeros, desde o Curso Normal até o pós-doutorado e as atividades atuais: meu amado marido. Sem ele eu não estaria aqui hoje. Sempre atuamos em parceria. Nossa manhã foi tecida com outros galos, nossas filhas, Márcia Luisa e Isabela, formadas em ambiente de muito estudo e trabalho árduo. Conosco elas formam um toldo de um tecido tão aéreo que se eleva por si, em forma de luz balão, que, agora, inclui nossos queridos netos: Marina, Renata, Arthur e Leandro e nossos genros: Rubens e Reginaldo. Obrigada, Márcio, Márcia, Isabela, genros e netos, pelo carinho e apoio de vocês.
Agradeço aos meus pais, falecidos, que me proporcionaram os estudos e meios para eu ser capaz de me constituir professora. Agradeço minha tia, Clélia de Freitas Capanema, falecida há poucos meses, com quem morei em Brasília. Por causa dela fiz o Curso Normal em Brasília e por seu intermédio conheci o Márcio. Lamento a sua ausência entre nós. Agradeço aos meus irmãos: Nilo (falecido), Lívea, Francisco, Lúcia e Maria Amália, aqui presentes, pelo companheirismo e cumplicidade.
Agradeço à UnB pelas oportunidades de enriquecimento profissional. Esta casa nos proporciona grandes possibilidades.
Agradeço à Faculdade de Educação, especialmente às professoras Lívia Freitas Fonseca Borges e Wivian Weler, diretora e vice-diretora, respectivamente, pelo apoio à realização deste evento.
Agradeço aos meus colegas de trabalho por estarem aqui e por acreditarem no que faço. Agradeço de modo particular às colegas da Linha de Pesquisa Profissão Docente, Currículo e Avaliação, responsáveis pela indicação do meu nome para receber esta homenagem. Um agradecimento especial à professora Cleide Maria Quevedo Quixadá Viana, pela saudação carinhosa e tocante.
Agradeço aos integrantes do GEPA e aos meus ex-orientandos pelas aprendizagens que vimos construindo.
Um agradecimento também especial ao meu sobrinho Tiago, que deixou suas atividades de estágio em Belo Horizonte, para nos proporcionar tão belo momento musical. Nada mais significativo do que uma presença jovem e universitária em uma cerimônia como esta. Você me emocionou desde o primeiro instante em que lhe fiz o convite, Tiago, pela disponibilidade e alegria manifestadas.
Por fim, agradeço à comitiva que acompanhou minha entrada neste auditório: meu marido, Márcio; professora Dra. Ilma Passos Alencastro Veiga, representando as colegas da Linha de Pesquisa Profissão Docente, Currículo e Avaliação; professora Daisy Collet de Araújo Lima, aposentada da Secretaria de Educação do DF, minha professora de Psicologia da Educação nos três anos do Curso Normal. Ela compôs o primeiro grupo de professores da Escola Normal de Brasília, tendo chegado em Brasília em 1960. A ela rendo minhas homenagens; professora aposentada de SEDF Maria Lívea Marques de Freitas, minha irmã; Juliane Emília Pelles Marques, Secretária Executiva da Faculdade de Educação da UnB; professora Dra. Carmyra Oliveira Batista, aposentada da Secretaria de Educação do DF, representando o GEPA e meus ex-orientandos.
COMO PALAVRAS FINAIS, já na condição de professora emérita, gostaria de fazer um apelo aos dirigentes da UnB e aos colegas da Faculdade de Educação e de outras unidades desta instituição: para que nosso país alcance o patamar de pátria educadora, precisamos fazer a nossa parte. Cabe-nos formar os professores que nossas crianças e jovens merecem ter. A universidade é co-responsável pela qualidade do trabalho desenvolvido na Educação Básica. Não há escolas de qualidade sem professores competentes. A competência docente tem sua construção iniciada nos cursos de nível superior. Estudos recentes apontam como os estudantes de cursos de licenciatura percebem o despreparo de alguns de seus formadores para tratar de questões que dizem respeito ao trabalho pedagógico das escolas de educação básica e à profissão docente, mas também como eles reconhecem que outros docentes se mostram engajados com as atividades dessas escolas. Uma das pesquisas mostra o papel importante do formador no estímulo aos estudantes para a docência. Mas revela, também, que há professores nas universidades investigadas que são vistos como modelos “pelo avesso”, isto é, oferecem exemplos de como não deve ser o trabalho do formador (GATTI, B. Formação inicial de professores para a educação básica: pesquisas e políticas educacionais. Estudos em avaliação educacional, São Paulo, v. 25, n. 57, p. 24-54, 2014). Parece-me não ser esse o caso da UnB.
O relatório Professores excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe (BRUNS, B.; LUQUE, J., 2014), p. 50), do Banco Mundial, concluiu que
“baixos padrões para o ingresso no magistério; candidatos de baixa qualidade; salários, promoções e permanência no emprego desvinculada do desempenho; e frágil liderança escolar têm produzido baixo profissionalismo na sala de aula e fracos resultados na educação. A migração para um novo equilíbrio será difícil e exigirá o recrutamento, a preparação e a motivação de um novo tipo de professor”.
A formação desse “novo tipo de professor” é responsabilidade das universidades. A UnB tem dado alguns passos nesse sentido, mas precisamos encarar com mais energia esse nosso papel.
Obrigada, professor Ivan Camargo, pela outorga desse título.
Obrigada pela presença de todos.