JC Notícias – 31/03/2022
Jornal A Tarde publica artigo de Giselly Lima de Moraes, professora da Faculdade de Educação da UFBA
Faz algum tempo que o debate sobre o futuro da leitura deixou de lado a questão sobre se o meio digital pode provocar o fim da leitura no papel. Isto porque a venda de livros impressos segue crescendo, apesar do avanço dos e-books.
Afastado, ao menos por enquanto, o temor de extinção do livro físico, a nova pergunta que tem provocado o meio educacional, indaga sobre qual a melhor forma de ler, se no meio digital ou no meio impresso. Decorrente desta, há outra discussão, ainda mais recente, que tenta responder à questão sobre se a leitura digital pode prejudicar a nossa capacidade de ler com profundidade. Esse debate vem ganhando espaço depois da publicação, no Brasil, do livro da neurocientista Maryanne Wolf, o Cérebro no mundo Digital – Os desafios da leitura na nova era (Editora Contexto).
O problema é que o debate público em torno do tema tem dado destaque apenas às transformações no cérebro provocadas pela exposição às telas de que Wolf trata em seu livro e a um possível efeito deletério da tecnologia digital sobre a leitura.
O debate é importante, mas afirmar que a leitura no meio digital deve ser rechaçada porque prejudica a leitura profunda é desonesto, pois não é isso que Wolf conclui e porque o conceito de leitura profunda precisa ser discutido, antes de mais nada.
Ora, os estudos das teorias da leitura nos indicam que um texto apresenta diferentes camadas de sentido, sobretudo, os literários. Tais estudos, feitos a partir da experiência com textos impressos, nos dizem que há leitores que não vão muito além da superficialidade, lendo os aspectos mais evidentes e literais, ainda que possam seguir o fio narrativo de um texto longo. Mas há leitores, mais experientes e críticos, que leem as camadas mais profundas do texto, porque ativam estratégias que os levam a perceber referências apenas sugeridas, entender jogos de ironia, metáforas, identificar relações com outros textos, entre outros procedimentos.
Portanto, o simples fato de evitar as telas não garante que o cérebro esteja de antemão preparado para realizar a leitura profunda. Antes, é preciso o contato permanente com o ato de ler e um trabalho educativo. Por outro lado, mesmo que um leitor das telas possa se dispersar mais por conta do caráter multimídia dos dispositivos, não significa que não seja capaz de fazer uma leitura aprofundada, interrogar o texto, comparar informações, dialogar sobre o lido e explorar suas diferentes camadas.
E se, em vez de demonizarmos o digital, concluirmos que não é preciso escolher, e sim aproveitar as diferentes possibilidades da leitura nos dias hoje? O que precisamos é pensar sobre o ensino da leitura profunda nas diversas materialidades textuais e fazer do livro um objeto tão presente na vida das crianças e jovens como os dispositivos digitais.
Jornal A Tarde