JC Notícias – 17/11/2023
“As crianças são sempre as maiores vítimas em qualquer guerra, em qualquer conflito. E os impactos nessa população tão vulnerável devem ser abordados não apenas como um problema imediato, mas como uma questão que moldará o futuro dessas regiões dilaceradas pela violência”, escreve o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, no editorial da seção especial do JCN desta sexta-feira
Numa idade em que deveriam estar brincando e frequentando a escola, centenas de milhões de meninos e meninas com menos de dezoito anos vivem atualmente em territórios ou países afetados por conflitos armados no mundo. Pequenas, frágeis e vulneráveis, essas crianças são submetidas a horrores indescritíveis, testemunhando e vivenciando o sofrimento físico e emocional causado pelos confrontos de homens adultos que assolam seus países.
O sofrimento dessas crianças é incomensurável. Mortes, tráfico, trabalho escravo, recrutamento por grupos armados, campos minados, doenças, mutilações e violência sexual compõem uma realidade trágica, que nenhum ser humano deveria suportar, muito menos os mais vulneráveis.
Em relatório divulgado pela ONU em 4 de junho, por ocasião do “Dia Internacional de Crianças Inocentes Vítimas de Agressão”, foram registradas mais de 315 mil violações graves contra crianças em áreas de conflito no mundo, entre 2005 e 2022. Pelo menos 105 mil jovens foram recrutados e usados por forças e grupos armados, mais de 32 mil crianças foram sequestradas e mais de 16 mil sofreram violência sexual. Todos os dias, pelo menos 20 crianças perdem de forma violenta a vida ou sofrem mutilações em seus pequenos corpos.
Especialistas do mundo todo são unânimes ao apontar que quase todas as crianças expostas a tais situações sofrerão sintomas de sofrimento psíquico, marcando-as de maneira indelével por toda a vida. O deslocamento, o abandono, os abusos físicos, psicológicos e sexuais, a exploração e a negligência comprometem não apenas seu desenvolvimento físico e emocional, mas também minam a esperança de um futuro mais promissor.
A perda de familiares, amigos, do lar seguro e acolhedor, e a separação prolongada de suas famílias deixam cicatrizes psicossociais e desenvolvimentais profundas. Em muitos casos, essas crianças são forçadas precocemente a assumir papéis adultos, envolvendo-se em trabalhos braçais para contribuir para a sobrevivência de suas famílias, enquanto são privadas do acesso a direitos fundamentais, como saúde, abrigo e educação.
Os dados revelam a extensão cruel desses conflitos. O relatório da ONG “Save the Children” destaca a dramática situação na Síria, onde mais de um milhão de crianças foram levadas a campos de refugiados, mais de 10 mil perderam a vida e o sistema de saúde foi devastado, deixando-as expostas a doenças que antes eram facilmente tratáveis. A maioria não sabe o que é viver sem guerra. A imagem do menino Aylan Kurdi, de apenas três anos, com sua camisetinha vermelha e sua bermuda azul, estendido sem vida na praia turca de Ali Hoca Burnu, se tornou símbolo do abandono dos refugiados sírios e do fracasso de todos nós em proteger essas vidas. Sua família fugia de bote, da guerra, em busca de uma vida melhor, mais segura – destino que ele, sua mãe e seu irmão, também menino, de apenas 5 anos, nunca encontraram.
O relatório da ONU, de junho passado, verificou mais de 16 mil ataques a escolas e hospitais e outros 22 mil incidentes de negação de ajuda humanitária a crianças nesses últimos 18 anos – isso antes da guerra entre Israel e o Hamas.
A educação, direito fundamental de toda criança, é uma grande vítima desses conflitos. Mais de 50 milhões de crianças e adolescentes que vivem nessas regiões encontram-se fora da escola. A longa luta de Malala Yousafzai, símbolo da resistência à privação educacional em zonas de conflito – ela também vítima do extremismo -, é emblemática de como a educação deve ser a esperança de um futuro melhor. Em muitas entrevistas com crianças em campos de refugiados ou em zonas de guerra, a principal resposta sobre a maior saudade que sentem é a escola.
Igualmente, não podemos nos esquecer que o Brasil, embora não esteja em guerra com países vizinhos, possui um crônico problema de conflitos urbanos que também tolhem vidas e esperanças de milhares de crianças.
Segundo estudo da Fundação Fogo Cruzado, em um período de sete anos, mais de 600 crianças e adolescentes foram alvos de armas de fogo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, resultando em 267 mortes e 334 feridos. Isso equivale a uma média de um incidente a cada quatro dias, apenas numa região do País. Os dados, registrados entre 5 de julho de 2016 e 8 de julho de 2023, revelam que quase a metade dessas tragédias foi desencadeada por ações e operações policiais. O Complexo do Alemão foi a aglomeração com mais casos mapeados.
São, na maioria, crianças ou adolescentes que estavam a caminho da escola ou da padaria, brincando no quintal ou correndo com amigos. Algumas vezes, esses números ganham rostos e nomes, como Thiago Menezes Flausino, de 13 anos, assassinado no dia 7 de agosto, durante uma ação da Polícia Militar, na Cidade de Deus, Zona Oeste da cidade, ou a menina Eloah da Silva dos Santos, de cinco anos, morta no Morro do Dendê, na Ilha do Governador, apenas cinco dias depois. Mas muitos são esquecidos, e medidas de proteção a essas infâncias perdidas ainda são muito falhas ou inexistentes.
As crianças são sempre as maiores vítimas em qualquer guerra, em qualquer conflito. E os impactos nessa população tão vulnerável devem ser abordados não apenas como um problema imediato, mas como uma questão que moldará o futuro dessas regiões dilaceradas pela violência.
Isso requer ação coordenada, desde o fornecimento de ajuda humanitária até a promoção da paz e da justiça. Ouvir as vozes dessas crianças é o primeiro passo para entender verdadeiramente o efeito devastador das guerras em suas vidas e para trabalhar na construção de um mundo onde a infância seja preservada, e não roubada, pela violência.
E lembremos que este horror, que ora denunciamos, é somente um dos casos do descompasso entre os avanços tecnológicos e materiais de nosso tempo, por um lado, e por outro o atraso na pauta propriamente humana, do cuidado, da generosidade, do uso solidário das conquistas técnicas a que chegamos. Urge um trabalho intenso em prol de uma cultura da paz, de um mundo único, que reúna todos no respeito a suas diferenças e no atendimento a todas as necessidades.
Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)