Benigna Villas Boas

Editorial: entre amor e violência

JC Notícias – 04/04/2025

“O futuro será mais sombrio se não soubermos perceber os sinais de perigo e responder àqueles que, mesmo com palavras trôpegas, clamam por ajuda”, escreve Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, para a Editoria Especial do JC Notícias desta sexta-feira, que aborda a série “Adolescência” e os efeitos da internet na infância e na juventude

“Adolescência”, a nova série da Netflix, explodiu globalmente em poucos dias por um motivo claro: seu núcleo é um crime brutal supostamente cometido por um menino de apenas 13 anos, que teria assassinado uma colega de escola. Mas o que mais choca na narrativa não é o ato em si, e sim como a série escava as camadas por trás dessa violência juvenil, expondo o papel catalisador das redes sociais na deformação de mentes ainda em formação. Estamos diante de um retrato cru de como a internet pode distorcer a percepção da realidade em jovens vulneráveis, alimentando ideologias como as do movimento red pill e da masculinidade tóxica, mais ou menos sinônima de machismo.

A série traça um paralelo perturbador com o conceito da pílula vermelha do filme Matrix – aquela que supostamente oferece a dura verdade sobre a sociedade, em contraste com a pílula azul da ignorância voluntária. Na narrativa digital atual, a red pill foi sequestrada por grupos que pregam uma visão distorcida de masculinidade, apresentando-a como antídoto contra o que chamam de “doutrinação progressista”. Essa suposta revelação é vendida como empoderamento, mas na prática funciona como veneno para adolescentes impressionáveis. Lembrem a epidemia de suicídios que se seguiu à Baleia Azul (2017), uma espécie de copycat dos suicídios que ocorreram após Goethe publicar seu Os sofrimentos do jovem Werther (1774).

O caráter ficcional da série espelha tragédias reais onde jovens radicalizados online cometem atrocidades. A trama mostra como essa propaganda tóxica se infiltra na psique adolescente por meio de fóruns e algoritmos que exploram inseguranças. Não por acaso, conceitos como “incel” (celibatário involuntário) e masculinidade tóxica aparecem como peças desse quebra-cabeça perverso. Repete-se, na série, que 80% das moças seriam atraídas por apenas 20% dos rapazes, numa irônica e quase macabra retomada da célebre equação 80/20 de Vilfredo Pareto, deixando assim 80% dos moços privados de uma vida sexual [1].

A série expõe como esses jovens passam a ver o feminismo, a diversidade e o próprio mundo feminino como ameaças existenciais, abraçando uma visão paranoica de mundo em que a violência se torna resposta legítima.

O grande mérito da produção está em mostrar que o verdadeiro crime vai além do assassinato em si. Destrói-se a vida da vítima, do jovem assassino (muitas vezes mais vítima do sistema que algoz) e de todas as famílias envolvidas. A série alerta para como nossa sociedade está produzindo uma geração de jovens perdidos no labirinto digital, no qual teorias conspiratórias e discursos de ódio se apresentam como refúgio para a solidão e a inadequação. Num mundo onde garotos podem se tornar assassinos antes mesmo da primeira barba, Adolescência questiona: até que ponto nossas plataformas digitais e nossa incapacidade de ouvir os jovens são cúmplices dessas tragédias?

O bullying é uma realidade crescente nas escolas. Ora, além do bullying tradicional, em que os “feios” (como se considera o garoto) eram desprezados, surge hoje um multiplicador, quando o menino passa as noites enfiado na Internet – sem que os pais percebam de que se trata. Os adultos se mostram impotentes, porque ignorantes, não sabendo lidar com esse assustador mundo novo. E isso vale tanto para o pai do menino preso quanto para seu pendant policial, que também ignora o mundo de seu filho. Um esqueceu que a paixão do filho é o desenho, o outro não sabe que o seu rebento estuda francês. O desenho poderia ter salvado Jamie. Talvez ainda o redima.

Por sinal, se Jamie não gosta dos esportes tradicionais da masculinidade, em compensação sua família não soube ou não quis fortalecer sua vocação, que seria a arte. E assim é que um menino sensível, por não se encaixar no modelo viril tradicional, é levado de algum modo à extrema violência.

Além da questão da Internet, temos aqui a relação entre pais e filhos, ou entre pai e filho – já que as mulheres, como a mãe de Jamie, a irmã deste e a psicóloga parecem aceitar melhor a personalidade dele. Isso, embora a psicóloga lhe negue o amor pedido, enquanto mãe e filha não respondem a ele, quando faz seu terrível desabafo, já no último dos quatro episódios da série.

No fundo, o que o menino quer é ser amado. É o que ele pedia à menina, que o desdenhava. É o que pede, desesperado, à psicóloga. E o arremate dessa frustração se dá quando diz aos pais que vai confessar o crime, e nem o pai, nem a mãe, nem a irmã conseguem lhe dizer nada, além de banalidades, como perguntar o que está comendo.

Uma série de constantes gritos sem resposta, de pedidos que ficam calados, de desespero insatisfeito. É importante apurarmos nossa escuta. O futuro será mais sombrio, se não soubermos apreender os sinais do perigo, nem responder a quem clama, ainda que com palavras trôpegas, por socorro.

Renato Janine Ribeiro – Presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)

[1] O princípio de Pareto, ou regra 80/20, afirma que 80% dos resultados são provenientes de 20% das causas.

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