DE QUAL AVALIAÇÃO PRECISAMOS? ALGUNS APONTAMENTOS
Benigna Maria de Freitas Villas Boas
Professora emérita da UnB
Texto produzido em 2006
Nós, professores da educação infantil, da educação fundamental, da educação média e da educação superior, estamos em busca de práticas avaliativas que ajudem nossos alunos a aprender. São muitos os motivos dessa busca. Para efeito desse texto selecionei três que nos permitem refletir sobre possíveis soluções. O primeiro deles encontra-se em dados do Ministério da Educação segundo os quais 91% dos estudantes brasileiros terminam a educação fundamental abaixo do nível desejável de aprendizagem, com dificuldades para reter ou compreender textos básicos. Em 2004 o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP – divulgou resultados da avaliação realizada em 2003 pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), associando o perfil dos alunos da 4ª série do ensino fundamental ao seu desempenho, os quais são resumidamente apresentados a seguir.
Morar em cidades com menos de 200 mil habitantes, na Região Nordeste, trabalhar, ter sido reprovado na escola e ter pais com baixa escolaridade foram características encontradas em maior grau entre os estudantes que estavam no estágio muito crítico do conhecimento em Língua Portuguesa. Os alunos das escolas municipais eram os que apresentavam pior desempenho: 22,8% estavam no estágio muito crítico de desempenho em Língua Portuguesa. Os municípios concentravam 66% dos 18,9 milhões de alunos de 1ª a 4ª série do ensino fundamental, de acordo com dados do Censo Escolar (INEP, 2004).
A reprovação, o abandono da escola e o conseqüente atraso escolar dos estudantes também incidiam negativamente no desempenho. Entre os alunos reprovados pelo menos uma vez, 32% se situavam no pior patamar de desempenho do Saeb e, entre aqueles que não foram reprovados, 12,4% se situavam no patamar mais baixo. Do total de alunos que declararam ter abandonado a escola pelo menos uma vez, 32,6% estavam no estágio muito crítico; dentre aqueles que não deixaram a escola, o índice foi de 16,6%. Com relação ao atraso escolar, 19,3% dos alunos que apresentavam um ano de defasagem estavam no estágio muito crítico; o índice era de 11,1% para os que não apresentavam distorção idade-série (INEP, 2004).
A rejeição que alguns estudantes sofriam na sala de aula, seja pelos colegas ou pelos professores, tem impacto no desempenho escolar, principalmente entre as crianças da 4ª série do ensino fundamental. Segundo dados do Saeb, 13% dos alunos da 4ª série afirmaram se sentir “deixados de lado” na sua turma. Para 34%, essa situação ocorria de vez em quando. Percebe-se, então, que 47% desses alunos se sentiam rejeitados.
Na 8ª série do ensino fundamental e na 3ª série do ensino médio, onde 12% e 9% dos estudantes, respectivamente, disseram se sentir “deixados de lado” na sala de aula, a influência da rejeição mostrou-se menor.
O segundo motivo coincide com os resultados da recente pesquisa conduzida por Zagury (2006) em 42 cidades e em 22 estados do Brasil. Para esse estudo foram entrevistados 1.172 professores do ensino fundamental e médio. As três maiores dificuldades apontadas por eles foram: manter a disciplina em sala de aula (22%); motivar os alunos (21%); e fazer a avaliação dos alunos (19%). Quanto às causas relacionadas à dificuldade para avaliar, as três que obtiveram maior freqüência são as seguintes: “a avaliação é quantitativa e não qualitativa/deveria valorizar mais a inteligência total do aluno/é muito ‘número’/não é ampla” (23%); “avaliar com justiça é sempre muito difícil/tem o medo de ser injusto” (11%); “o processo de avaliação é muito complexo/amplo/de grande responsabilidade” (10%). A autora (op. cit., p. 97) comenta que os professores demonstram perceber a responsabilidade do ato de avaliar e sentem-se desconfortáveis usando somente a abordagem quantitativa. Eles entendem que a avaliação não tem sido conduzida adequadamente.
O terceiro motivo encontra-se no anseio de setores da sociedade para que o trabalho pedagógico escolar se atualize. Um dos exemplos está no artigo da Revista Veja do dia 10 de maio deste ano, de autoria do administrador Stephen Kanitz: Vamos acabar com as notas. Estas estão tão arraigadas no nosso sistema educacional, diz ele, que nem percebemos mais suas nefastas conseqüências. Muitos alunos estudam para tirar “boas” notas e não para aprender. Após recriminar o uso de notas, o autor recomenda a adoção da auto-avaliação pelo aluno: “criaríamos um sistema educacional em que o aluno descobriria que não é o professor que tem de dar notas, é o próprio aluno. Todo mês, todo dia, todo semestre, pelo resto de sua vida” (KANITZ, 2006, p. 36). Pode-se entender que “dar notas” significa avaliar.
As informações apresentadas anteriormente demonstram que a educação básica brasileira necessita de revisão. Um dos componentes do trabalho pedagógico escolar que necessitam de redimensionamento é a avaliação. Ela tem importância fundamental nesse trabalho: fornece informações para o seu início e para sua continuidade e sempre acontece em seu término. Está sempre presente.
Os resultados do Saeb revelam a existência da internalização da exclusão, isto é, os excluídos da escola continuam em seu interior. Bourdieu e Champagne (1998, p. 222) dão a esse fato o nome de exclusão branda, por retratar práticas insensíveis, “no duplo sentido de contínuas, graduais e imperceptíveis, despercebidas, tanto por aqueles que as exercem como por aqueles que são suas vítimas”. Portanto, a avaliação depara-se com a situação contraditória de buscar a inclusão de todos no processo de aprendizagem, ao mesmo tempo em que a escola ainda convive com a exclusão, que expulsa o aluno da escola, mas, também, mantém no seu interior um grande contingente constituído pelos que não aprendem o que necessitariam aprender para continuar seus estudos. Essa modalidade de exclusão branda se manifesta de várias formas: pela reprovação, repetência, constituição de turmas especiais de aceleração da aprendizagem (cujo propósito costuma ser o de aligeiramento do trabalho pedagógico para que o aluno seja aprovado), pela recuperação de notas e até pela maneira de alguns estados organizarem o trabalho escolar em ciclos etc.
Diante desse cenário, lanço a reflexão: de qual avaliação precisamos?
A avaliação de que precisamos tem como foco a aprendizagem e não o “passar de ano”, a “aprovação” e a “reprovação”. A existência dessas três práticas escolares significa apostar, previamente, no fracasso do aluno, do trabalho do professor e, conseqüentemente, do trabalho da escola, como um todo. Quando me refiro à aprendizagem, refiro-me à aprendizagem do aluno e do professor e ao desenvolvimento da escola. Sem a aprendizagem do professor e o desenvolvimento da escola não há aprendizagem do aluno. Precisamos, então, ampliar o entendimento de avaliação.
A avaliação de que precisamos prepara-se para abandonar a ênfase em notas, aprovação e reprovação, substituindo-as pelo compromisso com a aprendizagem. Ao dizer cautelosamente que a avaliação “prepara-se” para mudar o seu foco, quero dizer que não basta rejeitar simplesmente essas práticas consagradas e valorizadas há tanto tempo. É preciso que as equipes escolares se organizem para substituí-las de forma amadurecida, consciente e bem fundamentada, isto é, com apoio teórico.
A avaliação de que precisamos é aliada do aluno e do professor. Não se avalia para punir, classificar, selecionar nem excluir, mas para incluir. A avaliação como inclusão não perde o rigor e a seriedade que a caracterizam. Pelo contrário, avalia-se para que realmente todos os alunos aprendam.
A avaliação de que precisamos atrela-se ao trabalho da escola fundamental cujo propósito primordial é propiciar a aquisição dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado, bem como o acesso aos rudimentos desse saber. A primeira exigência para o acesso a esse tipo de saber é aprender a ler e a escrever. Além disso, é preciso também aprender a linguagem dos números, a linguagem da natureza e a linguagem da sociedade. (SAVIANI, 1991, p. 23). O papel das práticas avaliativas é favorecer esse processo de aprendizagem, colocando a criança em contato permanente com a leitura e a escrita. Mas isso não se restringe aos anos iniciais da educação fundamental. Garantido o acesso ao saber elaborado, a sua continuidade deve ser mantida ao longo de toda a formação. A avaliação pode contribuir enormemente para o permanente contato do aluno com esse tipo de saber. Não de forma que o aluno apenas reproduza o que outros pensaram e formularam, mas de forma a criar oportunidades para ele pensar e tomar decisões sobre o seu processo de aprendizagem.
A avaliação de que precisamos usa as práticas informais para encorajar o aluno. Segundo Paulo Freire (1998, p. 66), “o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que ele se ‘ponha no seu lugar’ ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima (…) transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência”. Rótulos, broncas, comentários constrangedores, públicos ou não, olhares e gestos desafiadores, ameaças (Se você não ficar quieto, vai perder um ponto na prova! Não vai prestar atenção? Vai ver só a prova que eu vou dar!) tudo isso faz parte da avaliação informal que costuma denegrir a reputação do aluno e desmotivá-lo.
A avaliação informal é aqui destacada por dois motivos. O primeiro leva em conta os dados reveladores da internalização da exclusão, aos quais já me referi. Um desses dados lhe diz respeito mais diretamente: a rejeição sentida por parte considerável de alunos da 4ª série da educação fundamental, o que pode resultar da sua utilização inadequada. Essa avaliação se realiza por meio da interação do aluno com professores, demais pessoas que atuam na escola e até mesmo com colegas, em todos os momentos e espaços escolares. Na educação infantil e nos anos iniciais da educação fundamental, essa modalidade de avaliação é freqüente por causa do contato longo e duradouro do professor com seus alunos, dando-lhe chances de conhecer mais amplamente cada um deles: suas necessidades, seus interesses, suas capacidades. Quando um aluno mostra ao professor como está realizando uma tarefa ou lhe pede ajuda, a interação que ocorre nesse momento é uma prática avaliativa, isto é, o professor tem a oportunidade de acompanhar e conhecer o que ele já aprendeu e o que ainda não aprendeu. Quando circula pela sala de aula observando os alunos trabalharem, o professor também está analisando, isto é, avaliando o trabalho de cada um. São momentos valiosos para avaliação (VILLAS BOAS, 2004, p. 23).
A diferença entre a avaliação informal e a formal é que a informal nem sempre é prevista e, conseqüentemente, os avaliados, no caso os alunos, não sabem que estão sendo avaliados. Por isso deve ser conduzida com ética. Precisamos nos lembrar sempre de que o aluno se expõe muito ao professor, ao manifestar suas capacidades e fragilidades e seus sentimentos. Cabe à avaliação ajudá-lo a se desenvolver, a avançar, não devendo expô-lo a situações embaraçosas ou ridículas. A avaliação serve para encorajar e não para desencorajar o aluno. Por isso, rótulos e apelidos que o desvalorizem ou humilhem não são aceitáveis. Gestos e olhares encorajadores por parte do professor são bem-vindos. Afinal de contas, a interação do professor com os alunos é constante e muito natural. Uma piscadinha de olho de forma acolhedora e amiga, indicando que o aluno está no caminho adequado, lhe dá ânimo.
A avaliação informal dá grande flexibilidade de julgamento ao professor, devendo ser praticada com responsabilidade. Um dos exemplos disso é o costumeiro “arredondamento de notas”, que consiste em o professor aumentá-las ou diminuí-las segundo critérios por ele definidos e nem sempre explicitados. Além disso, esses critérios costumam ser diferentes para cada aluno. Esse arredondamento é feito com base nessa modalidade de avaliação. Quando é feito para aumentar a nota, os argumentos usados costumam ser: o aluno é organizado, freqüente, bonzinho, faz os deveres de casa. Por outro lado, o arredondamento é feito, também, para diminuir a nota, usando-se justificativas do seguinte tipo: o aluno é desobediente, conversador, não faz as atividades, chega atrasado, é preguiçoso. São argumentos advindos da avaliação informal. É preciso deixar claro que a avaliação informal é muito importante e pode ser uma grande aliada do aluno e do professor, se for empregada adequadamente, isto é, para promover a aprendizagem. Um argumento em seu favor é que ela acontece em ambiente natural e revela situações nem sempre previstas, o que pode ser altamente positivo, se soubermos tirar proveito dela e se não a usarmos de forma punitiva. O professor atento, interessado na aprendizagem do seu aluno e investigador da realidade pedagógica procurará usar todas as informações advindas da informalidade para cruzá-las com os resultados da avaliação formal e, assim, compor a sua compreensão sobre o desenvolvimento de cada aluno (VILLAS BOAS, 2004, p. 23).
A avaliação informal pode acontecer quando o professor: dá ao aluno a orientação de que necessita, no momento exato; manifesta paciência, respeito e carinho ao atender suas dúvidas; providencia os materiais necessários à aprendizagem; demonstra interesse pela aprendizagem de cada um; atende a todos com a mesma cortesia e interesse, sem demonstrar preferência; elogia o alcance dos objetivos da aprendizagem; não penaliza o aluno pelas aprendizagens ainda não adquiridas, mas, ao contrário, usa essas situações para dar-lhe mais atenção, para que ele realmente aprenda; não usa rótulos nem apelidos que humilhem ou desprezem os alunos; não comenta em voz alta suas dificuldades ou fraquezas; não faz comparações; não usa gestos nem olhares de desagrado com relação à aprendizagem.
Pesquisas têm encontrado uma faceta inaceitável da avaliação informal: a emissão de comentários públicos sobre a pessoa do aluno, por parte de professores, em sala de aula e em outros espaços escolares, assim como a extensão desse tipo de avaliação às famílias dos alunos (VILLAS BOAS, 1993). Em uma situação de pesquisa, observou-se, em uma segunda feira, a professora de uma turma de primeira série da educação fundamental dizer a um aluno que não havia realizado as tarefas de casa: “sua mãe não fica em casa nem nos finais de semana para ajudá-lo?” (VILLAS BOAS, 1993).
Tratando da avaliação informal, Freitas (2002, p. 315) comenta que
Professores e alunos defrontam-se na sala de aula construindo representações uns dos outros. Tais representações e juízos orientam novas percepções, traçam possibilidades, estimam desenlaces, abrem ou fecham portas e, do lado do professor, afetam o próprio envolvimento deste com os alunos, terminando por interferir positiva ou negativamente com as estratégias de ensino postas em marcha na sala de aula. É aqui que se joga o sucesso ou o fracasso do aluno – nesse plano informal e não no plano formal. De fato, quando o aluno é reprovado pela nota, no plano formal, ele já tinha sido, antes, reprovado no plano informal, no nível dos juízos de valor e das representações do professor – durante o próprio processo.
O segundo motivo que provocou a inclusão da avaliação informal nessa exposição, que trata de algumas das necessidades da avaliação, é o fato de essa modalidade de avaliação, quando desenvolvida de forma a constranger e humilhar os alunos, poder contribuir para que eles façam o mesmo com seus colegas, na escola, em casa e em outros lugares. Esse fato recebe o nome de “bullying” e está preocupando educadores em todo o mundo. Na Inglaterra, a situação parece ser pior, mas a sociedade já começou a reagir. Bullying é o ato covarde de crianças molestarem, ameaçarem e humilharem colegas. Assume formas diversas: violência física; ataques verbais; rótulos; ameaças e intimidação; extorsão ou roubo de dinheiro ou de objetos; rejeição pelo grupo. Esse ato acontece com alguma criança a cada 7 minutos em parques de diversão, no Canadá. A todo momento crianças estão presenciando situações desse tipo. Professores e pais nem sempre percebem as suas conseqüências (www.bullying.org, 2005).
O que é preocupante em relação ao bullying é que a bibliografia sobre o assunto não o associa ao tratamento recebido pelo aluno na escola. Já existem manuais de informação a pais e professores. Contudo, não se menciona o fato de o bullying poder ser decorrência da avaliação informal a que o aluno e seus colegas se submetem. Os alunos são expostos a situações de avaliação a todo instante na escola. Por isso é tão comum a reprodução das experiências escolares em outros contextos. Crianças gostam de “dar aula” para seus amigos e até para brinquedos usando o mesmo tratamento que seu professor ou sua professora dá não só a elas, mas à turma toda. A inspiração para o bullying não pode vir da avaliação informal?
Percebe-se, assim, o poder que a avaliação confere ao professor, que pode decidir a trajetória escolar do aluno, por meio da aprovação e da reprovação. Torna-se necessário romper com esse processo unilateral e autoritário. Assim,
A avaliação de que precisamos usa procedimentos variados: provas, entrevistas, relatórios, portfólios, observação, auto-avaliação, avaliação por colegas, registros reflexivos etc. É importante darmos oportunidade ao aluno de evidenciar suas aprendizagens usando diferentes linguagens: escrita, oral, poética, estética, gráfica etc. Com relação a provas, cabe mencionar que não se advoga a sua eliminação. Questionam-se: o fato de elas serem o único procedimento de avaliação, a função classificatória que têm cumprido e a sua feitura. Elas têm dado ao professor e aos estudantes um estado de quietação, isto é, de segurança quanto à possibilidade de esse instrumento atestar a capacidade de expressão de conhecimento. De modo geral, elas ainda não incluem questões contextualizadas e apresentadoras de situações-problema significativas. A intenção do professor ao adotar a prova tem sido, de modo geral, dar um atestado de satisfação à instituição e à sociedade (BATISTA, 2006, p. 11). Ela precisa ser entendida como um dos recursos de coleta de informação para a promoção de novas aprendizagens.
Vale a pena comentar a utilidade de outros dois procedimentos de avaliação, pelo fato de não serem ainda bem conhecidos: o portfólio e a avaliação por colegas.
Originariamente, o portfólio é uma pasta grande e fina em que os artistas e os fotógrafos iniciantes colocam amostras de suas produções, as quais apresentam a qualidade e a abrangência do seu trabalho, de modo a ser apreciado por especialistas e professores. Essa rica fonte de informação permite aos críticos e aos próprios artistas iniciantes compreenderem o processo em desenvolvimento e oferecerem sugestões que encorajem sua continuidade. Em educação, o portfólio apresenta várias possibilidades; uma delas é a sua construção pelo aluno. Neste caso, o portfólio é uma coleção de suas produções, as quais apresentam as evidências da sua aprendizagem. É organizado por ele próprio para que ele e o professor, em conjunto, possam acompanhar o seu progresso (VILLAS BOAS, 2004, p. 38). O portfólio é um procedimento de avaliação que permite aos alunos participarem da formulação dos objetivos da sua aprendizagem e avaliar o seu progresso. Eles são, portanto, participantes ativos da avaliação, selecionando as melhores amostras do seu trabalho para incluí-las no portfólio.
Arter e Spandel (1992, p. 36) oferecem o seu entendimento de portfólio:
… uma coleção proposital do trabalho do aluno que conta a história dos seus esforços, progresso ou desempenho em uma determinada área. Essa coleção deve incluir a participação do aluno na seleção do conteúdo do portfólio; as linhas básicas para a seleção; os critérios para julgamento do mérito; e evidência de auto-reflexão pelo aluno.
Easley e Mitchell (2003, p. 21) concordam com o entendimento acima e acrescentam:
Muitas pessoas possuem “coleção” de seus trabalhos. Enquanto alguns chamam isso de portfólio, não é o que assim entendemos. Um portfólio é uma coleção especial dos melhores trabalhos organizada pelos próprios alunos. Eles participam ativamente de todo o processo, construindo o portfólio, identificando os critérios de aprendizagem e selecionando as peças do seu trabalho que demonstram como os critérios foram alcançados. Além disso, a reflexão sobre o seu trabalho e sobre os critérios permite aos alunos formarem novos objetivos de aprendizagem. Assim é que os portfólios fazem sentido.
Easley e Mitchell (op. cit., p. 33) distinguem portfolio de arquivo de trabalhos:
Um arquivo e um portfólio não são a mesma coisa, embora ambos contenham peças de trabalho de alunos. Um arquivo é simplesmente uma coleção de trabalhos dos alunos. Em contraste, o portfólio é uma seleção refinada de trabalhos do aluno … Um portfólio não é apenas um arquivo, mas é parte de um processo de avaliação que ensina os alunos a avaliarem e apresentarem seus próprios trabalhos.
O trabalho com o portfólio norteia-se pelos seguintes princípios: a) construção pelo próprio aluno; b) reflexão – o aluno decide o que incluir e, ao mesmo tempo, analisa suas produções, tendo a chance de refazê-las sempre que quiser e for necessário; c) criatividade – o aluno escolhe a maneira de organizá-lo e busca formas diferentes de aprender, sendo incentivado a buscar novas idéias e não a repetir e a reproduzir o que outros já fizeram; d) auto-avaliação – o aluno compara as suas próprias produções com os critérios de avaliação estabelecidos por ele e o professor, procurando reconhecer suas potencialidades e fragilidades; e) parceria – o portfólio é um dos poucos procedimentos de avaliação em que professor e aluno atuam em conjunto; f) autonomia – o aluno percebe que pode trabalhar de forma independente, não precisando estar sempre aguardando orientação do professor.
O trabalho com o portfólio apresenta os seguintes benefícios:
- a) Favorece qualquer tipo de aluno – o desinibido, o tímido, o mais e o menos esforçado, o que gosta de trabalhar em grupo e o que não gosta, o mais e o menos motivado ou interessado pelo trabalho escolar, o que gosta de escrever e até o que não gosta – porque ele pode passar a gostar, assim como pode apresentar suas produções usando outras linguagens.
- b) Os alunos declaram sua identidade, isto é, se mostram não apenas como alunos, mas como sujeitos dispostos a aprender. Sua história de vida e suas experiências são conhecidas e valorizadas. Ninguém tem motivo para se esconder, se retrair. O trabalho de todos é encorajado e orientado para o alcance dos objetivos propostos, que são do conhecimento de todos.
- c) As atividades escolares levam em conta as experiências vividas pelo aluno fora dela, dando sentido à sua aprendizagem. É a escola conectada às práticas sociais.
- d) O aluno percebe que o trabalho escolar lhe pertence; portanto, cabe-lhe assumir responsabilidade pela sua execução. Ele não está fazendo algo para agradar seus pais e professores, mas em seu próprio benefício. O trabalho escolar passa a ser prazeroso.
- e) Como o portfólio motiva a aluno a buscar formas diferentes de aprender, as suas produções revelam suas capacidades e potencialidades, as quais poderão ser apreciadas por várias pessoas. Amplia-se, assim, a concepção de avaliação, que deixa de ter a função de “verificar” a aprendizagem para incorporar a de possibilitar ao aluno e até mesmo incentivá-lo a mostrar seu progresso e prepará-lo para comunicar o que aprendeu e a defender suas posições.
A construção do portfólio torna-se uma atividade agradável para o aluno. Em lugar de ter suas produções isoladas umas das outras e apresentadas ao professor quando ele assim o determina, para serem “corrigidas” e devolvidas ou não quando ele quiser, o aluno conserva uma coleção organizada de suas atividades, de modo que possa perceber sua trajetória, assim como suas necessidades iniciais e como as satisfez ao longo do período de trabalho.
Segundo Klenowski (2003, p. 3), “a auto-avaliação, a reflexão e a oportunidade de o aluno revelar o processo pelo qual o trabalho é expresso no portfólio constituem a centralidade do portfólio.
A avaliação por colegas (da mesma disciplina ou da mesma turma, por estarem desenvolvendo as mesmas atividades) é um componente importante do processo avaliativo e pode ser o primeiro passo para a auto-avaliação. Enquanto analisam e corrigem suas próprias produções, os alunos podem fazer o mesmo com as dos colegas. Sabendo que suas atividades serão apreciadas por colegas, eles as prepararão com mais cuidado e, possivelmente, com mais prazer. As tarefas diversas podem ser avaliadas em duplas de alunos e, posteriormente, em grupos de três ou quatro, sempre tendo o acompanhamento do professor. Essa ajuda mútua tem a vantagem de ser conduzida por meio da linguagem que os alunos naturalmente usam. Além disso, os alunos costumam aceitar mais facilmente os comentários de colegas do que os de seus professores.
Os próprios alunos podem criar listas de discussão, blogs e outros meios, por Internet, para envio de material para análise por colegas.
O feedback advindo de um grupo de colegas pode ser mais bem aceito do que o individual. Esse tipo de avaliação permite a participação dos alunos e aumenta a comunicação entre eles e o professor, sobre sua aprendizagem. Além disso, o fato de os alunos reconhecerem suas próprias necessidades, comunicando-as ao professor, faz com que este tenha o seu trabalho facilitado e tempo maior para auxiliar os alunos que precisam de sua atenção. Enquanto os alunos estão ocupados, envolvidos na avaliação das produções dos colegas, o professor pode dedicar-se a observar o desenvolvimento das atividades, refletir sobre elas e fornecer as intervenções necessárias. Em resumo, os alunos aprendem assumindo o papel de professores e de avaliadores das aprendizagens dos colegas (BLACK et al, 2003, p. 51).
Ao apresentar seus argumentos favoráveis à avaliação por colegas, praticada na disciplina Avaliação Escolar, do Curso de Pedagogia, na UnB, uma aluna assim se manifestou: “os colegas são mais gente como a gente”.
A avaliação de que precisamos inclui a autoavaliação pelo aluno. Enquanto avaliam as atividades de colegas, os alunos aprendem a avaliar seu próprio trabalho. Duncan Harris e Collin Bell, citados por Weeden et al (idem, p. 75), entendem a autoavaliação como um continuum do controle pelo professor ao controle pelo aluno. Esse continuum significa que a responsabilidade crescente pela sua aprendizagem é imputada ao aluno. Parte-se da avaliação tradicional para a colaborativa (professor e aluno) e da avaliação por colegas para a auto-avaliação.
A autoavaliação é um componente importante da avaliação formativa. Refere-se ao processo pelo qual o próprio aluno analisa continuamente as atividades desenvolvidas e em desenvolvimento, registra suas percepções e sentimentos e identifica futuras ações, para que haja avanço na aprendizagem. Essa análise leva em conta: o que ele já aprendeu, o que ainda não aprendeu, os aspectos facilitadores e os dificultadores do seu trabalho, tomando como referência os objetivos da aprendizagem e os critérios de avaliação. Dessa análise realizada por ele, novos objetivos podem emergir. A autoavaliação não visa à atribuição de notas ou menções pelo aluno; tem o sentido emancipatório de possibilitar-lhe refletir continuamente sobre o processo da sua aprendizagem e desenvolver a capacidade de registrar suas percepções. Cabe ao professor incentivar a prática da auto-avaliação pelos alunos, continuamente, e não apenas nos momentos por ele estabelecidos, e usar as informações fornecidas para reorganizar o trabalho pedagógico, sem penalizá-los.
Weeden et al (2002, p. 72) entendem que a auto-avaliação é mais ligada à avaliação para a aprendizagem do que à avaliação da aprendizagem, pelo fato de buscar-se o desenvolvimento da aprendizagem. Ela inclui a formulação de julgamentos do mérito do trabalho, pelo aluno, o que usualmente tem sido tarefa do professor. A valorização do que os alunos pensam sobre a qualidade do seu trabalho constitui um desafio à ordem estabelecida e à rotina escolar.
Os autores acima citados (idem, p. 74) afirmam que o ponto de partida para a adoção da autoavaliação consiste em definir o papel do professor e o do aluno. David Satterly, citado por Weeden et al (idem p. 74), considera que há aspectos do trabalho dos alunos que o professor espera que eles conheçam melhor do que ele: o quanto trabalharam; o que eles estão tentando alcançar; até que ponto eles entendem o que alcançaram; como o trabalho se relaciona aos seus objetivos pessoais. Contudo, provavelmente no início, os alunos não conheçam, tanto quanto o professor, as expectativas curriculares e os critérios de avaliação. Isso parece indicar a necessidade de parceria na avaliação, para que cada participante contribua com informações que, reunidas, permitam retratar as aprendizagens.
Assim como acontece com a avaliação informal, o uso das informações fornecidas pela auto-avaliação é feito com ética, o que significa que elas só podem servir aos propósitos que são do conhecimento dos alunos. Além disso, o professor precisa ter muita sensibilidade para distinguir as que podem e as que não podem ser comentadas publicamente. A avaliação é um ato ético por excelência.
A autoavaliação é uma aliada do aluno por possibilitar-lhe refletir sobre o seu progresso e participar da tomada de decisão sobre as futuras atividades; ao mesmo tempo, é aliada do professor, por permitir-lhe conhecer com mais profundidade o que o aluno pensa sobre o seu trabalho e com ele dividir responsabilidades. Na perspectiva tradicional de avaliação, o aluno não costuma saber que a sua aprovação ou reprovação já está decidida antes mesmo de a avaliação formal acontecer, porque tudo costuma ser resolvido somente pelo professor. Os critérios de avaliação não são construídos pelo professor e pelos alunos.
A avaliação de que precisamos é realizada com ética, tendo como base o respeito ao aluno como pessoa e às suas produções. Os seguintes problemas éticos têm de ser eliminados: a avaliação da pessoa do aluno e não propriamente do seu desempenho; a avaliação da família do aluno; somente o aluno ser avaliado e apenas pelo professor; emissão de comentários sobre a pessoa e o desempenho do aluno nos vários ambientes e durante eventos escolares etc. Se a avaliação existe para apoiar a aprendizagem e esta é conquistada pelo próprio aluno, nada mais natural que ele, juntamente com o professor, avalie seu progresso e participe da tomada de decisão quanto aos novos rumos das atividades.
A avaliação de que precisamos é inserida no projeto pedagógico da escola. Não como o item que ocupa o menor espaço e atenção e o último lugar, mas como o que se atrela aos objetivos para garantir o seu alcance, formando o par poderoso: objetivos/avaliação. Assim concebido, esse par funciona como o impulsionador do par conteúdo/método. Essa inserção tão significativa da avaliação requer que se registrem: o entendimento de avaliação adotado pela equipe escolar, com que objetivos ela é empregada, o que se avalia na escola, quem é avaliado na escola, quem avalia, como se avalia e o que se faz com os seus resultados. A avaliação, como processo, é, então, planejada e prevista no projeto pedagógico escolar. Como processo, a avaliação na escola inclui a avaliação da aprendizagem do aluno, do trabalho realizado com os alunos, do trabalho realizado pela escola, como um todo, e do desempenho docente.
A avaliação de que precisamos é discutida com os pais dos alunos para que eles a compreendam, aceitem e sejam parceiros da escola e dos filhos no desenvolvimento de todo o trabalho. Não simplesmente comunicada. Eles têm o direito de conhecer o trabalho da escola e o dever de acompanhá-lo. Afinal de contas, o aluno é “um leva e traz” desse trabalho. A escola e a família têm de saber tirar proveito disso.
Concluindo, pode-se afirmar que avaliação é aprendizagem: enquanto se avalia se aprende e enquanto se aprende se avalia. O que se aprende com a avaliação? Aprendem-se não somente as capacidades previstas no currículo, mas, também, as relações que se estabelecem entre os sujeitos. Dentre essas aprendizagens, cabe destacar que os futuros professores aprendem a avaliar enquanto se formam. O seu processo de formação é longo, tendo início quando entram na escola como alunos. Todas as situações que presenciam e vivenciam, como alunos, nos vários níveis do processo de escolarização, fazem parte da sua constituição de professores e podem ser bem marcantes. Costuma-se pensar na sua formação obtida apenas nos cursos de formação que freqüentam; contudo, estes representam apenas uma pequena parte da sua vivência como alunos. Nesse processo inclui-se a avaliação. Por ser um tema que tem merecido pouca atenção nos cursos de formação, em nível médio e superior, pressupõe-se que os atuais professores estejam reproduzindo as práticas dos seus ex-mestres. E essas práticas nem sempre se inserem na avaliação comprometida com a aprendizagem de todos os alunos.
Referências
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