JC Notícias – 09/11/2023
Em sua coluna “Ética e Política”, na Rádio USP, Renato Janine Ribeiro, professor-titular da USP e presidente da SBPC, dá sequência à sua série de comentários a respeito da ética e sua relação com os regimes democráticos
A democracia é o regime mais ético que existe, porque nela a igualdade prevalece. O voto do mais rico e o voto do mais pobre são iguais, por isso mesmo, durante tanto tempo, mesmo em regimes que chamamos de democráticos como a França (a Revolução Francesa), os Estados Unidos (independentes) e a Inglaterra (Parlamentarismo), o voto não era universal. Não só as mulheres não votavam, mas de um modo geral os pobres, os não proprietários não votavam. E por quê? Porque os governos tinham medo dessa igualdade, tinham medo de que os mais pobres tirassem dinheiro dos mais ricos, por exemplo, aumentando os impostos dos mais ricos.
Desse ponto de vista não mudou muita coisa. No Brasil, atualmente, existe um esforço para tentar fazer que os riquíssimos paguem os impostos que eles não pagam e há toda uma campanha em favor dos riquíssimos, com argumentos, inclusive, bastante falsos, mas o fato é que essa ideia de igualdade já atemoriza os privilegiados. Então, nesse sentido, a igualdade é importante, é um valor democrático, significa que, mesmo que eu tenha mais dinheiro que você, eu não posso determinar quem vai governar, e os mais pobres, sendo mais numerosos, podem. E quando o regime político funciona direito, quando não há fraude, eles conseguem eleger candidatos que fazem a política que os beneficiam, o que é inteiramente justo, uma vez que o dinheiro não é um dado natural, ele é construído por uma série de políticas coletivas, que permitem uma pessoa ter mais dinheiro, ter mais propriedade etc.
De modo geral, quando a gente examina as campanhas eleitorais e os resultados de eleições, nota-se que há uma tendência dos mais pobres de votarem mais à esquerda e uma tendência dos mais ricos de votarem mais à direita. Os mais ricos são mais conservadores e os mais pobres são mais progressistas. O que muda nessa caracterização? São duas coisas: primeira, para que os mais pobres não votem por políticas sociais que os favoreçam, constrói-se todo um conjunto de representações, que vou simplificar chamar de ideologia. Vou chamar de ideologia as representações mentais que fazem que alguém não vote ou não haja de acordo com seus próprios interesses. Em uma sociedade transparente, cada um procuraria seus interesses, então a maioria faria prevalecer os seus.
Isso é essencialmente algo econômico, existem pessoas que precisam de mais dinheiro, pessoas que têm dinheiro sobrando. Então, cada um vai defender seus interesses e a maioria vai prevalecer, o que acaba levando àquela proposta que foi celebrizada por Karl Marx, mas que é muito mais ampla do que Marx – é até mesmo cristã -, de cada um segundo suas possibilidades ou capacidades, a cada um segundo suas necessidades. É o que funciona, por exemplo, no sistema de saúde coletiva. Na saúde coletiva todos nós contribuímos, mas aquele que precisa mais ser atendido vai mais ao hospital, recebe tratamentos etc. E nos países desenvolvidos, com exceção dos Estados Unidos, é o que funciona.
Então, o que vai acontecer é que nós teremos um conjunto de representações mentais para fazer as pessoas não votarem, não agirem de acordo com seus interesses. Uma dessas grandes representações é o conjunto de factoides que a gente viveu no Brasil. Por exemplo, dizer que “o governo quer fazer que o homem seja mulher e a mulher seja homem”, ou dizer que “a escola pública é um espaço de doutrinação esquerdista”. Nada disso corresponde à realidade, mas foram utilizados para assustar pessoas mais pobres que, com isso, perderiam valores que para elas são importantes, o que não é verdade. Então, essa é uma forma muito utilizada de conseguir inverter essa busca do próprio interesse.
Esse é um problema grande na democracia e continuaremos na próxima coluna discutindo esse tema.