Benigna Villas Boas

A BNCC do Ensino Médio: entre o sonho e a ficção

 

JC Notícias – 10/04/2018

A BNCC do Ensino Médio: entre o sonho e a ficção

“Não podemos simplesmente contribuir para o desmonte da Educação Básica Púbica de Ensino Médio, aprofundando ainda mais o fosso que a separa da Educação do Povo da Educação das Elites”, afirma o Eduardo F. Mortimer, professor da Faculdade de Educação da UFMG e conselheiro da SBPC

O MEC publicou no último dia 03 de abril a BNCC do Ensino Médio. BNCC é a sigla para Base Nacional Comum Curricular, que será um instrumento de orientação dos currículos a serem desenvolvidos pelos diversos sistemas de ensino estaduais e municipais do País. Para entendermos o significado dessa BNCC, há que se analisa-la no contexto da Lei da Reforma do Ensino Médio, de no 13.415, aprovada em 2017. Atualmente, o Ensino Médio é ofertado por meio de 13 disciplinas, todas obrigatórias. Há, sem dúvida, um excesso. Essa situação foi se configurando à medida que essas novas disciplinas eram aprovadas pelo Congresso Nacional e o currículo se diversificava, meio como uma árvore de natal que não cresce no tamanho, mas cresce no número de bolas e outros penduricalhos.

A nova lei, que se originou numa medida provisória e foi aprovada a toque de caixa, atropelando esforços já em curso no Congresso Nacional e desconhecendo totalmente diversos segmentos da sociedade brasileira interessados no debate, instituiu um Ensino Médio diversificado e integral. Para cada um dos três anos, são previstas 1.000 horas. Há uma parte comum, que tem por base a BNCC, com 1.800 horas; e cinco itinerários formativos diferenciados, para o estudante optar por um deles, para os quais estão previstas 1.200 horas: 1. linguagens e suas tecnologias; 2. matemática e suas tecnologias; 3. ciências da natureza e suas tecnologias; 4. ciências humanas e sociais aplicadas; 5. formação técnica e professional.

Um das grandes mudanças, com muito impacto na formação de professores, é que currículo, que até então era pensado em termos de componentes curriculares (Física, Química, Matemática, Português, Filosofia, etc.), passa a se organizar em cinco áreas: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional.

O que salta aos olhos na lei do Ensino Médio é a não obrigatoriedade de as escolas ofertarem todos os cinco itinerários formativos. Agora vem a BNCC e completa esse quadro legal estabelecendo que apenas os componentes Português e Matemática são obrigatórios. O grande problema da falta de professores no ensino médio, que toca todas as regiões do País, principalmente nas áreas de física e química, evapora-se como num passe de mágica. As escolas, não sendo obrigadas a oferecer todos os itinerários, poderão simplesmente optar por não oferecer, por exemplo, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, pois isso baixa o custo do ensino e resolve o problema da falta de professores nessa área. Com certeza as escolas particulares para classe média e alta irão ofertar todos itinerários. Porém, para a escola pública, ofertar certos itinerários significa ter professores da área. Isso vai aumentar ainda mais o fosso que separa as escolas particulares da elite das escolas públicas destinadas a população de baixa renda, ao não permitir que estudantes pobres cursem certas áreas – principalmente a de ciências naturais, nas quais há deficiência de professores. A medida condena essa população, que chega com muito esforço e dificuldade ao ensino médio, a cursar apenas os itinerários ofertados por escolas da sua região. Isso é muito grave no momento em que as ações afirmativas, na forma de cotas para estudantes de escolas públicas, cotas para negros e outras políticas de inclusão, dão acesso para a população mais pobre às universidades públicas federais, que sem dúvida oferecem o que há de melhor no ensino superior brasileiro. Como o estudante de escola pública vai poder frequentar cursos universitários nas áreas de ciências da natureza se as escolas não oferecerem itinerários de Ciências da Natureza e suas Tecnologias?

Outro problema grave da BNCC toca a questão da formação de professores. Hoje, a maioria das universidades forma professores em cada um dos componentes do currículo de ensino médio: Física, Química, Português, História, etc. Quando verificamos o que a BNCC sugere como conteúdo das cinco áreas, não é possível reconhecer nenhum componente curricular tradicional. Por exemplo, na área de Ciências da Natureza e suas Tecnologias, uma das três competências listadas tem a seguinte redação: “Analisar fenômenos naturais e processos tecnológicos, com base nas relações entre matéria e energia, para propor ações individuais e coletivas que aperfeiçoem processos produtivos, minimizem impactos socioambientais e melhorem as condições de vida em âmbito local, regional e/ou global.” Uma das habilidades que integram essa competência, tem a seguinte redação: “Analisar e representar as transformações e conservações em sistemas que envolvam quantidade de matéria, de energia e de movimento para realizar previsões em situações cotidianas e processos produtivos que priorizem o uso racional dos recursos naturais.”

É claro que soa como bem aos ouvidos essa cantiga interdisciplinar, pois analisar transformações em sistemas que “envolvem quantidade de matéria, de energia e de movimento” (no mínimo a Física e a Química estão envolvidas) “para realizar previsões em situações cotidianas e processos produtivos” (aqui somam-se às duas, a Geografia e a História, e talvez a Matemática e o Português). Mas quem forma o professor com toda essa competência interdisciplinar? São raros os cursos que formam professores de ciências naturais para o ensino médio e essa é uma demanda em que a BNCC é radical, pois todos os temas são trabalhados interdisciplinarmente.

O que acontecerá na prática? Como professores formados em Química, Física ou Biologia poderão atuar interdisciplinarmente para dar conta do currículo que irá surgir a partir da BNCC? Os professores de escolas públicas têm um local de trabalho, onde possam se reunir e planejar atividades conjuntas? Não! Eles vão às escolas apenas para “dar aulas”. Há uma série de tarefas que o professor realiza rotineiramente, como planejar aulas e corrigir provas e trabalhos, que são feitas geralmente em casa. Na escola, neste caso seja ela pública ou particular, geralmente há apenas uma sala de professores que fica lotada no intervalo do turno e que não se presta a esse tipo de trabalho.  Portanto, a BNCC impõe, em sua saga interdisciplinar, a necessidade de construir novas escolas ou ampliar as atuais, com espaços de trabalho para os professores, que permita minimamente o encontro entre professores de disciplinas diferentes para preparar as aulas articuladas e conjuntas. Isso é factível no momento atual? Impõe também que as universidades formem professores com esse perfil interdisciplinar, oferecendo cursos de ciências da natureza com aprofundamento posterior em uma das disciplinas, física, química ou biologia. Isso é viável na tradição largamente disciplinar da universidade brasileira? E finalmente demanda que professores de escola pública tenham dedicação exclusiva a um único estabelecimento e recebam bons salários, pois aumenta-se, em muito, as exigências sobre a profissão. Há vontade política de aumentar o salário de professores e criar a dedicação exclusiva para professores de educação básica?

No momento em que vivemos, sob o peso de uma Emenda Constitucional (EC 95, de 2016) que limitou os gastos públicos em Educação e Saúde, como obter verbas para projetar novas escolas, aumentar salários e transformar o ensino superior, preparando professores efetivamente para uma prática interdisciplinar?

Portanto, na conjuntura atual, as competências e habilidades previstas na BNCC já nasceram mortas, justamente por não se adequarem ao sistema fortemente disciplinar do ensino médio. Talvez seja mesmo bom criar uma demanda por um ensino interdisciplinar. Mas com certeza, para a idade em que estão os alunos de ensino médio, essa interdisciplinaridade tem que ter por base uma sólida visão das disciplinas que compõe o currículo e, portanto, não se pode abrir mão da formação atual, que é disciplinar para esse campo de atuação dos professores. O Ensino Médio é justamente o momento em que as disciplinas se configuram em toda a sua plenitude. É claro que formar um professor de química com capacidade de dialogar com seus colegas de biologia e física é uma demanda mais do que legítima para as universidades responsáveis por essa formação. Mas não podemos simplesmente contribuir para o desmonte da Educação Básica Púbica de Ensino Médio, aprofundando ainda mais o fosso que a separa da Educação do Povo da Educação das Elites. As classes sócias de baixa renda também têm direito a estudar no Ensino Médio, e a cursar qualquer dos itinerários, e não apenas os que um sistema de ensino precário consegue ofertar.

 

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