Benigna Villas Boas
Publicado em 10/10/2023
Esta é a pergunta que um pai dirige ao professor do seu filho que acabara de ser reprovado. Estou lendo o livro Véspera, de autoria de Carla Madeira, que conta a história de dois irmãos gêmeos, de seus pais, amigos e de suas respectivas namoradas.
“Os pais foram chamados à escola para ouvirem que seu filho Abel não poderia continuar seus estudos ali no ano seguinte. Não eram permitidas duas bombas consecutivas. Isso se deu exatamente nos dias em que o irmão viajava para o Rio, por conta e mérito de seu desempenho. Uma coincidência cruel que a luz de um tenha brilhado junto com a sombra do outro. O que tornava a luz mais luz e a sombra mais sombra.
Na sala da diretoria, Custódia e Antunes, pais de Abel, aguardavam o professor Adilson. Custódia, já tendo ouvido o que não queria ouvir e manifestado em tom elevadíssimo tudo que bem quis, encontrava-se exaurida. Fosse por ela, já teriam ido embora, mas Antunes pegou firme na mão da mulher e, com autoridade, exigiu a presença do professor.
Professor Adilson, depois da demora, entrou constrangido na sala. Sua empáfia, abalada pela luta que travara no caminho, se entrou com ele, soube se esconder. Havia cautela em seu jeito de olhar e uma camada de vergonha. Viu Antunes e Custódia, um ao lado do outro, e se deu conta de que aquele menino tinha pai e mãe. Ela, com os olhos chorados. Ele, com a dignidade de um homem que acordou cedo, tomou banho e se arrumou para estar ali.
O diretor da escola situou o professor sobre o que se passara antes de sua chegada.
– Já expliquei ao sr. Antunes e a dona Custódia que Abel não poderá continuar na escola, infelizmente.
– Infelizmente, concordou o professor.
– E estou explicando a eles que não é um professor que dá bomba no aluno, é o aluno que toma bomba.
– Nós já entendemos isso, diretor, antes mesmo de chegar aqui. Pode estar certo. Entendemos perfeitamente. Mas estranhamos que, pela segunda vez, Abel passe em todas as matérias, menos na do professor Adilson. Então, eu queria perguntar ao senhor, professor, com todo o respeito, o que o senhor fez pelo meu filho?
– Ensinei. Penso que foi isso que fiz pelo seu filho, sr. Antunes, o que faço por todos os alunos: ensino. Preparo minhas aulas com dedicação, nunca falto, sou sempre pontual …
– O que o senhor fez por ele, professor?
– Não sei exatamente o que o senhor está me perguntando, mas dei ao seu filho as notas que ele tirou, nem mais nem menos.
– Ah … As notas, tem razão. As notas são exatas. Os números não se enganam, professor. Só as pessoas fazem burrada. Não é, professor? Soube que era assim que o senhor chamava meu filho: de burro – disse Antunes, comovido. A voz mal dominada provocou no professor um visível constrangimento. Eu também sou burro, professor. Como sou! Mas o senhor não imagina como sou bom em fazer contas, tudo de cabeça e rápido. Mesmo assim, sou burro. A burrice não tem nada a ver com fazer conta. A burrice é … sei lá, um jeito de empacar, como os burros. Eu dei a meu filho o nome de Abel tendo dado ao irmão o nome de Caim. Fiz isso ofendido, empacado na ofensa. Os burros empacam assim, professor, depois abaixam a cabeça e aceitam ser maltratados. Talvez Abel sofra esse tipo de burrice – disse Antunes, sem segurar as lágrimas que escorreram pelo seu rosto. Talvez Abel ache, por minha culpa, que é destino ser maltratado, ser morto. Eu fiz isso com ele. Eu … eu mesmo não acredito nisso, mas, por causa da minha burrice, tenho que aceitar a burrice dele. Tem lá sua lógica. Então, professor, me diga, o que foi que o senhor fez pelo meu filho? O que foi que o senhor fez por esse menino? – perguntou Antunes se levantando. E, sem esperar qualquer resposta, levou Custódia com ele de mãos dadas. Antes de sair, ele parou na porta e de lá mesmo concluiu: – O que o senhor fez por meu filho, professor ? – repetiu com a voz limpa e cortante, enquanto as mãos, soltas no ar, desenharam a mímica do nada. – Quero que o senhor empaque nessa pergunta pelo resto de sua vida, e o senhor vai ver que a burrice doi.
Ao ficarem sozinhos, professor Adilson, com um gesto, não permitiu que o diretor dissesse nada. Aquela vergonha era dele e não havia nada que pudesse piorar ou melhorar o que sentia”.
O que acabo de apresentar é uma ficção, mas poderá ser, também, uma situação real. Ao mesmo tempo em que pais podem formular pergunta semelhante aos professores, principalmente quando seus filhos não estão aprendendo o desejável, os mestres também devem se questionar: o que estou fazendo para que meus estudantes aprendam?
A pergunta feita três vezes ao professor por Antunes foi carregada de ironia porque, ao mesmo tempo, o pai queria dizer ao professor que nada ele havia feito, isto é, nenhuma aprendizagem tinha sido conquistada por seu filho.
O pai também se autoavaliou, ao afirmar: “Talvez Abel ache, por minha culpa, que é destino ser maltratado, ser morto. Eu fiz isso com ele”. Este encontro poderia ter acontecido muito tempo antes, para que fosse evitada essa tragédia.
O texto inclui duas justificativas que professores costumam usar quando não conseguem admitir sua participação no insucesso dos estudantes: “é o aluno que toma bomba”, isto é, não estudou, sua família não colabora … Outro modo de dizer a mesma coisa é: “dei ao seu filho as notas que ele tirou, nem mais nem menos”. Esta é uma forma de banalizar o uso de notas.
A avaliação serve para promover as aprendizagens e não para julgar ou classificar os estudantes.