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JC Notícias – 30/03/2020

Manifestação da ANPEd contrária à Portaria 343/2020 – MEC

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação se manifesta contra portaria do Ministério da Educação que dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais durante a  pandemia  de coronavírus

JC Notícias – 30/03/2020

Leia na íntegra:

A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação vem manifestar-se em contrário à Portaria 343 do MEC – Gabinete do Ministro, publicada no dia 18 de março de 2020, que dispõe sobre “substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – COVID-19”.

Avaliamos que esta decisão governamental atinge a autonomia universitária, desconsidera a heterogeneidade regional, cultural e socioeconômica que caracteriza o país e menospreza as distinções entre os cursos presenciais e a distância, em suas particularidades de estrutura, gestão, currículo e planejamento. É importante destacar, ainda, o caráter autoritário da referida Portaria que desconsidera as condições locais e as vozes das comunidades escolares, impactando fortemente o campo educacional no Brasil.

Face à pandemia, somos solidários a todas as vítimas, destacamos a importância da defesa do Sistema Unificado de Saúde (SUS) e reivindicamos medidas de apoio à população, no entendimento de que o momento é de mútuo cuidado. Compreendemos que medidas sócio-políticas, por vezes, são necessárias perante a amplitude das consequências de uma pandemia, desde que respaldadas pelos rituais democráticos e da sensatez constitucional. Na particularidade da educação, a adoção de um modelo de ensino a distância em substituição ao modelo presencial de ensino, sem consultas prévias, fere o princípio constitucional da autonomia acadêmica e administrativa das universidades, pressuposto substantivo da organização democrática das universidades brasileiras, na medida em que a decisão do uso dos recursos da EaD cabe aos órgãos dirigentes das IES. A Portaria atropela a independência e a autonomia das IES e a liberdade de cátedra, uma vez que institui modo único e homogêneo de viabilizar a complexa experiência da formação humana assumindo que a intervenção curricular pode resolver problemas fora de sua ordem, como, por exemplo, na educação básica para ajudar a controlar o comportamento de crianças.

As Universidades gozam de autonomia didático-científica e, portanto, cabe a essas instituições decidir e aprovar os Projetos Pedagógicos dos seus Cursos. É no Projeto Pedagógico que consta o percurso acadêmico de cada titulação e a modalidade de ensino (presencial ou a distância). Os projetos pedagógicos só podem ser alterados pelos Conselhos Superiores das Universidades, medindo-se cuidadosamente os impactos nos currículos das universidades desde a oferta dos componentes curriculares aos percursos individuais dos estudantes.

Assim, a implementação da modalidade EaD de forma irrestrita e não prevista nos PPC não pode se configurar como estratégia de substituição e/ou reposição das aulas presenciais. Os cursos presenciais não consideram as especificidades da modalidade EaD nem a necessidade de formação docente para o uso dessas tecnologias com objetivo educacional. A oferta de conteúdos na modalidade EaD exige planejamento complexo para a garantia de qualidade acadêmica e equidade de condições de aprendizagem a todos estudantes, assim como uniformidade da operacionalização em meios digitais, financiamento para aquisição de infraestrutura tecnológica e formação de docentes e discentes para a modalidade. Torna-se impossível para a maioria das universidades brasileiras, em especial as universidades públicas, a adoção de um modelo de ensino a distância em substituição a um modelo presencial, sem um período de planejamento, discussão aprofundada nas comunidades acadêmicas e eventual reestruturação da sua base tecnológica e organizacional, sobretudo numa conjuntura de total excepcionalidade, gerada pela propagação do COVID-19 e seus efeitos devastadores na população brasileira e mundial.

Assumimos que o momento é de grave pandemia, mas isso não justifica tentar seguir com todas as atividades a qualquer custo, atropelando o ensino e a pesquisa, com evidentes prejuízos na formação, inclusive impondo a falsa ideia de que constitui tarefa fácil que pode ser cumprida de maneira aligeirada passar aulas presenciais para a modalidade EaD, mais uma vez vulnerabilizando a docência e os discentes em todos os níveis e modalidades de ensino. É preciso entender que esta modalidade não é mero substituto do ensino presencial. Urge indagar os riscos de incitar a adoção dessa modalidade neste momento de fragilidade da população brasileira, configurando um paliativo que flerta com a precarização da esfera pública favorecendo propostas privatistas na oferta da educação básica e superior e, por fim, a desobrigação do Estado brasileiro com a oferta da educação como um direito da população brasileira.

A Portaria 343/2020/MEC parece desconhecer, na atual conjuntura, as diferentes soluções e formas de organização propostas pelas reitorias, fórum de diretores/as, coordenadores/as, profissionais, docentes e estudantes, tanto na graduação quanto na pós-graduação, em defesa das IES, principalmente na manutenção do funcionamento institucional, notadamente por meio de atividades remotas. É preciso ressaltar os esforços na manutenção de processos interativos, sob formas diversas (incluindo a mediação tecnológica), que vem produzindo e fazendo circular conhecimentos voltados à comunidade para a reflexão sobre o contexto que estamos atravessando. Assim, as IES se mostram presentes, ativas e solidárias frente aos desafios que se impõem nesta situação de pandemia.

Nos desafios ligados ao ensino, ao considerarmos que a modalidade online é um suporte já utilizado amplamente no apoio às atividades educativas, destacamos não poder ser este meio assumido como caminho para a condução e/ou substituição da docência presencial, bem como das demais práticas presenciais integrantes da rotina acadêmica. Desta maneira, não é viável assegurar a manutenção do funcionamento das práticas universitárias regulares em um cenário de grande insegurança para a saúde coletiva. A qualidade das práticas presenciais não pode, portanto, ser condicionada a atividades online, constituindo-se, caso aceitas, em um ataque à prestação de um serviço público, e de qualidade referendada, à sociedade. Não se pode desconsiderar que há uma desigualdade material e tecnológica entre as IES brasileiras, entre docentes e entre discentes. Aceitar a instituição abrupta da EaD, sem atentar às suas especificidades, ao contexto de cada IES e ao necessário processo de preparação, é correr o risco de precarizar a experiência formativa. O acesso a plataformas online exige recursos que, evidentemente, não estão à disposição de todos estudantes e docentes, principalmente em um país com tamanha desigualdade socioeconômica como o Brasil, recursos que vão desde um computador até a conexão com a internet.

Na atenção aos estudantes, cabe lembrar a Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduandos (as) das Instituições Federais de Ensino Superior, coordenada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), em 2019, que apresenta uma mudança no perfil mostrando que as/os estudantes estão mais parecidos com uma parte da população brasileira que não esteve, historicamente, representada nos bancos do ensino superior. Embora esse perfil venha se modificando, ainda há uma série de medidas que teriam prerrogativa no desenvolvimento acadêmico do/as estudantes, como o acesso a uma infraestrutura que permita a execução das atividades acadêmicos na modalidade EaD. Ainda sob este aspecto, cabe destacar o impacto de tal medida na população negra e periférica. Sabe-se que as desigualdades sociais no Brasil são estruturalmente racializadas. Ou seja, a população negra é a mais afetada pelas desigualdades de renda que permitem ou não acesso a bens e serviços. Essa população, por ocupar os estratos mais baixos da desigualdade, não possui, de forma plena, as ferramentas técnicas necessárias para a realização de atividades a distância. Isso ampliará o foco de desigualdade que assola a sociedade brasileira.

A EaD exige currículos, didática e condições que não são de domínio ou estão à disposição de todos e todas, reduzi-la à adaptação de atividades no formato online é empobrecer o processo ensino aprendizagem e desqualificar a EAD e a docência. Não existem condições materiais, nem acadêmicas para substituir os componentes curriculares presenciais por atividades a distância de uma forma afoita, inicialmente pela dinâmica de cursos que não foram pensados para o contexto da EaD. Ainda, a proposta ignora a necessidade de as/os estudantes frequentarem bibliotecas e outros componentes materiais e laboratoriais importantes para sua formação superior.

A EaD de qualidade social (CONAE, 2014) demanda uma perspectiva pedagógica dialógica) e participativa entre todos/as: professores/as e estudantes. A ausência dessa vertente de formação pode acarretar prejuízos aos processos formativos. Também a Portaria estigmatiza a EaD, por situá-la como estratégia contingencial, em tempos de pandemia, naturalizando práticas emergenciais e reforçando o paradigma mercadológico de uso da EaD voltada à economia de custo, por meio de processos formativos aligeirados, que se valem da larga utilização de broadcasting (ao invés de processos formativos dialógicos) e da precarização das condições materiais de trabalho dos/as professores/as que dela participam.

Compreendemos que é de fundamental importância atentarmos para a necessária continuidade da luta pela qualidade da educação brasileira. A organização de aulas na modalidade da EaD deve ser produzida com uma linguagem específica e considerando suas especificidades. É de suma importância entendermos que essa é uma outra modalidade de ensino, que exige outras propostas curriculares. Trata-se de entender que a aula presencial não pode ser simplesmente transposta para uma aula que acontece a distância; é preciso gestão, proposta curricular, planejamento, formação docente e discente, ou seja, investimento e políticas que se direcionam para isso.

Nesse quadro, a ANPED reafirma a valorização da EaD como instrumento para a educação de qualidade, conforme disposto no relatório final da Conferência Nacional de Educação (2014) e no Plano Nacional de Educação. Valoriza a continuidade das pesquisas sobre a educação online e a manutenção do diálogo com professores/as e pesquisadores/as atuantes na Universidade Aberta do Brasil (UAB) e em demais universidades públicas e comunitárias, comprometidas com a EaD de qualidade social. Também considera importante intensificar o debate sobre a institucionalização da educação online nas IES; fortalecer as políticas de formação de professores/as universitários/as para atuar na educação online, uma vez que não se pode naturalizar aligeiradas transposições curriculares e didáticas da modalidade presencial de ensino para a modalidade online; ampliar e/ou criar infraestrutura tecnológica, no interior das universidades e IES, considerando a necessidade de formação de equipes multidisciplinares para a efetivação da EaD de qualidade social (CONAE, 2014) e fortalecer o diálogo entre gestores/as acadêmicos/as e autoridades políticas para promover ações de inclusão digital dos/as estudantes universitários/as, fornecendo-lhes acesso à internet, equipamentos e ambientação para o estudo online.

Portanto, rechaça a estratégia do MEC e ações de secretários estaduais e municipais de educação de substituição açodada de cursos presenciais por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, em função dos argumentos listados nesta manifestação. Nossa preocupação deve se centrar na busca por atenuar as problemáticas vividas, zelando para não abrir espaço para fragilizar a educação brasileira. Partimos da premissa de que a educação para todos e todas é inegociável e as pesquisas em educação podem contribuir de muitas outras formas neste momento mas não vulnerabilizando professores, excluindo estudantes e transformando a vida de docentes, jovens estudantes, pais e crianças em cotidianos de instrução computadorizada e precária.

É momento de tratarmos as mudanças impostas pela convivência com uma pandemia, na reorganização de nossos lares e instituições, nos fortalecendo enquanto coletividade, que preza pela educação e pela pesquisa de qualidade, zelando pelo futuro de nosso país. Rio de Janeiro, 29 de março de 2020.

Geovana Mendonça Lunardi Mendes

Presidente da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação – ANPEd

ANPEd

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