DEVER DE CASA: “EU NUNCA TINHA PARADO PRA PENSAR NISSO”
XVI ENDIPE – Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino – UNICAMP – Campinas – 2012
Enílvia Rocha Morato Soares – SEDF
Benigna Maria de Freitas Villas Boas – FE/UnB
Resumo
O texto apresenta parte dos resultados de uma pesquisa conduzida em uma escola da rede pública de ensino do DF em 2010 com o objetivo central de compreender o papel ocupado pelo dever de casa no processo de avaliação das aprendizagens e, consequentemente, na organização do trabalho pedagógico de uma turma de 3º ano de escolaridade. O referencial teórico discute a lógica à qual pode se vincular o dever de casa: à avaliação classificatória ou à formativa. Os dados da pesquisa foram coletados por meio de: observação de aulas; análise de documentos referentes aos deveres de casa; entrevistas com a professora da turma e com estudantes; aplicação de questionários e realização de grupo focal com os pais. O presente artigo aborda somente as percepções da professora da turma que, mesmo enviando rotineiramente atividades escolares para que os alunos realizassem fora do período de aula, revelou nunca ter antes parado para pensar sobre essa prática. Isso indica que, na escola, talvez nunca tivesse ocorrido momento para esse tipo de reflexão. A professora prescrevia tarefas de casa quatro dias na semana, para que os estudantes criassem rotina de estudo e mantivessem vínculo com a escola. Mesmo dedicando grande parte do trabalho pedagógico de cada dia aos deveres de casa, ela afirmou não lhes dar “muito valor” no processo avaliativo. Os depoimentos da professora, em seu conjunto, parecem indicar que, em sua sala de aula, essas atividades se aproximavam dos preceitos da avaliação formativa. Constatou-se que o dever de casa era uma prática inquestionável, tornando-se natural sua adoção. Por isso recomenda-se que ele seja objeto de outras pesquisas. Palavras-chave: Dever de casa. Avaliação. Ensino fundamental.
Considerações iniciais
Este texto apresenta parte dos resultados obtidos por meio da pesquisa intitulada
“O Dever de Casa no Contexto da Avaliação das Aprendizagens”, realizada em 2010, com o objetivo central de compreender o papel do dever de casa no processo de avaliação das aprendizagens e, em consequência, na organização do trabalho pedagógico da sala de aula. A pesquisa foi realizada em uma turma de 3º ano do ensino fundamental de uma escola da rede pública de ensino do Distrito Federal. Foram utilizados os seguintes procedimentos de coleta de informações: observação do trabalho pedagógico desenvolvido na turma; análise de orientações escolares que tratavam do dever de casa, do caderno de planejamento da professora e das atividades dos estudantes; entrevistas semiestruturadas com a professora; entrevistas coletivas com os estudantes; questionários aplicados aos pais dos estudantes; grupo focal desenvolvido junto aos pais de estudantes.
Chamou-nos a atenção a satisfação demonstrada pelos pais diante da possibilidade de discutir o assunto, pois, segundo eles, nunca haviam participado de uma discussão sobre o tema. A realização do grupo focal ofereceu, portanto, importantes contribuições à pesquisa.
Embora tenhamos ouvido pais, estudantes e a professora, pela exiguidade de espaço, este texto foi construído a partir da ótica da professora da turma.
Dever de casa: a serviço da avaliação classificatória ou da formativa?
Pesquisas sobre o dever de casa (CARVALHO, 2003; CARVALHO e BURITY, 2005; RESENDE, 2006; CARVALHO, NASCIMENTO e PAIVA, 2006) mostram que ele tem sido prescrito como fixação, reforço ou revisão e que, em alguns casos, é levado em conta na atribuição de nota. Carvalho (2003), segundo seus estudos, afirma que ele era, naquela época, uma estratégia de ensino voltada também à preparação para aulas e provas.
Em pesquisa com estudantes de anos iniciais do ensino fundamental Carvalho e Burity (2005, p. 4) encontraram que a maioria deles fazia os deveres de casa regularmente e os que não os faziam eram descritos como bagunceiros, desinteressados, não gostavam de estudar, tinham deficiências de aprendizagem, tinham mães/pais analfabetos, não recebiam ajuda em casa. As professoras acreditavam que os estudantes aprendiam mais com o dever de casa, “corrigido” predominantemente de forma coletiva e incluído na nota por meio de avaliação qualitativa, com a utilização de critérios como responsabilidade e participação.
As pesquisadoras chegaram à conclusão de que
é nas camadas mais pobres que estão na escola pública que se evidencia a problemática da relação entre o dever de casa e as dificuldades escolares dos/as estudantes, particularmente quando se considera que as professoras esperam a adesão da família/mãe ao dever de casa e que a feitura ou não do dever afeta a avaliação e as chances de sucesso ou fracasso escolar. Os dados apresentados sugerem que o remédio (dever de casa) pode estar funcionando como veneno para algumas crianças, mães e lares (CARVALHO e BURITY, 2005, p. 15).
Carvalho e Burity (2005, p. 4) afirmam que “o fato importante é que o dever de casa repercute direta ou indiretamente na avaliação: vale nota ou pontos somados à nota final, ou serve como treino para os testes”.
Em sua investigação conduzida em turmas de 4ª série, Carvalho, Nascimento e Paiva (2006) observaram que os deveres de casa não recebiam nota; esta advinha de provas. A avaliação aparentemente era pontual. No entanto, as autoras comentam que ela poderia ser formativa, caso houvesse acompanhamento individual e avaliação informal contínua e sistemática do dever de casa. Acrescentam: “atualmente, em contraposição à pressão das provas, e para valorizar o esforço contínuo do estudante, a avaliação vem incluindo o dever de casa, que vale pontos somados à nota” (CARVALHO, NASCIMENTO E PAIVA, 2006, p. 346).
As mesmas pesquisadoras constataram a seguinte sistemática de avaliação das tarefas de casa: as atividades de português prescritas numa quarta-feira eram avaliadas somente na segunda-feira seguinte; as de matemática prescritas na segunda-feira eram avaliadas na quinta-feira e as de ciências passadas na terça-feira eram avaliadas na sexta-feira. Os deveres de história, geografia, artes e educação religiosa, quando adotados, eram analisados uma semana depois.
Os resultados dessas pesquisas indicam claramente o uso da avaliação classificatória.
Pesquisa conduzida por Villas Boas (1993) sobre as práticas avaliativas e a organização do trabalho pedagógico, embora não tivesse como objetivo analisar os deveres de casa, constatou que essas tarefas ocupavam grande parte do tempo escolar e eram acompanhadas da avaliação classificatória e informal. Em uma turma de 1ª série do ensino de 1º grau, uma de 2ª, uma de 3ª e outra de 4ª, a primeira atividade do dia era a correção do dever de casa. Primeiramente, os estudantes abriam os cadernos sobre as carteiras e a professora ia passando e verificando quem o havia feito ou não. Enquanto isso, fazia comentários sobre cadernos mal conservados e sobre a aparência e atitudes de alguns estudantes, anotava bilhetes nos cadernos daqueles que rotineiramente não cumpriam as tarefas de casa, para os pais assinarem ou irem à escola, fazia ameaças de retirar o horário do recreio, enfim, as “broncas” se iniciavam logo cedo. Feito isso, passava-se à “correção” propriamente dita dos exercícios, com a chamada de alguns estudantes ao quadro (VILLAS BOAS, 1993, p. 64).
Nas quatro turmas observadas os momentos de correção dos deveres de casa davam margem à ocorrência de repreensões, ameaças, castigos e rótulos em voz alta, que focalizavam mais a pessoa do estudante do que o seu desempenho. Além disso, ressaltavam-se mais os “desacertos” do que os acertos. Os estudantes que não faziam os deveres de casa recebiam um recado escrito em seu caderno dizendo que só entrariam na escola no dia seguinte acompanhados do pai ou da mãe ou tinham seu nome escrito no quadro de giz indicando que não teriam recreio ou recebiam forte repreensão. Assim começava o dia de trabalho dessas crianças de 1ª, 2ª, 3ª e 4ª séries. As professoras valorizavam mais o fato de o estudante ter cumprido a tarefa do que tê-la acertado (VILLAS BOAS, 1993, p. 141).
Os achados de pesquisas sobre dever de casa apontam sua vinculação à avaliação formal e, principalmente, à informal. Na pesquisa conduzida por Villas Boas (1993), como a “correção” dos deveres de casa era a primeira atividade de cada dia, a avaliação informal dominava o cenário pedagógico. Observou-se que eles propiciavam interação forte e duradoura do estudante com o professor, quando este criava seus juízos de valor. Essa interação nem sempre se estabelecia de maneira positiva, ou seja, em benefício dos estudantes. Constatou-se o que Freitas afirma: “a parte mais dramática e relevante da avaliação se localiza aí, nos subterrâneos onde os juízos de valor ocorrem” (2003, p. 45).
Na perspectiva da avaliação formativa, o dever de casa é compreendido como parte do trabalho pedagógico desenvolvido em sala de aula. Vatterott (2010, p. 10) entende que essa tarefa tem propósitos claros para o professor, a escola, os pais e os estudantes. Além disso, fornece feedback aos professores sobre as aprendizagens dos estudantes, possibilitando o reajuste do trabalho pedagógico e o oferecimento das intervenções necessárias. Não necessita receber nota. O seu valor se encontra em possibilitar ao estudante conhecer suas conquistas de aprendizagem. Consiste em um momento de reflexão e autoavaliação pelo estudante.
A avaliação das tarefas de casa pode ser feita em parceria pelos estudantes. Sabendo que suas atividades serão apreciadas por colegas, eles as prepararão com mais cuidado e, possivelmente, com mais prazer. Essa ajuda mútua tem a vantagem de ser conduzida por meio da linguagem que eles naturalmente usam. Além disso, os estudantes costumam aceitar mais facilmente os comentários de colegas do que os de seus professores.
Inserido na lógica da avaliação formativa, o dever de casa tem o seu entendimento e a sua prática explicitados no projeto político-pedagógico da escola. Não é desenvolvido a critério de cada professor. Isso não quer dizer que seja normatizado nem burocratizado, mas que tenha organização que norteie a sua prática e a torne compreensível por todos, inclusive estudantes e pais. Nada mais inseguro para os estudantes e pais terem de supor quais são as exigências de cada professor. Quando isso acontece a escola demonstra não ter um rumo a seguir.
Dever de casa: adentrando a sala de aula
Em uma entrevista realizada com a professora Nina (nome fictício da professora da turma do 3º ano), foi possível perceber que, até o início dessa pesquisa em sua sala de aula, o dever de casa não fazia parte de suas reflexões. Foi por ela admitido:
Eu nunca tinha parado pra pensar nisso… sério mesmo. Pra que a gente manda tarefa de casa? Que hábito é esse que a escola adquiriu? Quem inventou isso? Será que não é mais uma forma de punir as crianças? De cobrar das crianças… às vezes até de tirar um pouco da responsabilidade, da tua responsabilidade enquanto professora, né? São coisas que eu comecei a pensar.
Observa-se que a professora ainda não havia refletido sobre essa tarefa, o que indica que, na escola, talvez nunca tivesse ocorrido momento para isso. Sua declaração possibilita trazer à tona uma prática rotineira, conhecida e, ao mesmo tempo, inquestionável, muitas vezes utilizada para agradar os pais, que esperam que seus filhos levem deveres para casa.
A professora Nina utilizou-se de variados tipos de tarefa, tais como exercícios mimeografados, xerocados, no caderno ou nos livros-texto envolvendo os conteúdos curriculares trabalhados em sala de aula; revista Picolé contendo atividades como cruzadinhas, jogo dos sete erros, caça-palavras e labirinto; entrevistas envolvendo levantamento de dados sobre histórias de vida dos próprios estudantes, de familiares ou conhecidos, e, ainda, consulta em jornais, revistas ou programas televisivos, a fim de obter alguma informação da atualidade ou localizar palavras contendo algum aspecto gramatical específico.
Além das tarefas de casa enviadas de segunda a quinta-feira pela professora Nina, alguns estudantes levavam algumas atividades que não haviam sido concluídas em tempo hábil em sala de aula. Foi frequentemente utilizada pela docente a expressão: “quem não terminou, termine em casa”. Ao ser indagada a esse respeito, a professora Nina declarou não considerar a conclusão de tarefas de sala como dever de casa, usando essas palavras:
Não. Dever de casa não. É pra terminar a tarefa [referindo-se à atividade iniciada na escola]. Tem escrito no caderno “tarefa de sala” para que os pais percebam essa diferença. Teve um dia que uma mãe reclamou de muita tarefa de casa. Eu disse: “mas teve dois dias que ele acumulou com as da sala”. A maioria da turma fez. Então… ele tem que fazer, né? Se ele não conseguiu fazer no tempo de sala de aula…
Essa situação pode ser indicativa de que, justamente os estudantes que mais demandam tempo para realizar suas tarefas escolares, são os que mais levam essas atividades para casa. Nesse sentido, o dever de casa pode ser visto não só como uma forma de complementação do tempo escolar que, ao que parece, não estava sendo suficiente para alguns estudantes, mas também como uma forma de penalizar justamente aqueles que já se encontravam desfavorecidos em sala de aula pela falta de condições de acompanhar o ritmo dos colegas.
Quanto aos deveres de sala enviados pela professora Nina para que fossem concluídos em casa, ela afirmou:
“às vezes a gente quer que as crianças concluam todos no mesmo tempo certinho. Isso não existe. São praticamente as mesmas crianças” [referindo-se às que não conseguiam terminar as tarefas em sala de aula].
Essa assertiva demonstra sua consciência em relação à variabilidade de condições existentes entre as crianças no que concerne ao processo de construção do conhecimento. Atitudes compatíveis com esse entendimento foram também identificadas na prática pedagógica da professora Nina em momentos tanto de prescrição como de avaliação das tarefas de casa. No entanto, ao afirmar que eram praticamente as mesmas crianças que não concluíam as tarefas em aula e as levavam para casa, a professora poderia já ter criado sentimento de que elas eram menos capazes que as outras. Este é um exemplo de avaliação informal.
A utilização de tarefas de casa diferenciadas para três estudantes da turma investigada foi uma das iniciativas adotadas pela professora Nina que comprovam a sua percepção de que as crianças não aprendem de forma padronizada e ao mesmo tempo. O motivo alegado por ela para a utilização da referida estratégia foi atender às necessidades específicas de aprendizagem demonstradas por esses estudantes, o que se revela pertinente, uma vez que
o fracasso na realização da TC (tarefa de casa), se frequente, desanimará o aluno, que terá crescente dificuldade em se empenhar e se debruçar sobre ela. Em contrapartida, a satisfação de ter dado conta, vencido o desafio da TC, tenderá a animá-lo (NOGUEIRA, 2002. p. 66).
Algumas situações de sala evidenciaram que a professora Nina considerava as diferenças individuais das crianças nos momentos de análise dos deveres de casa. As estratégias adotadas por ela para esse fim (seja corrigindo as atividades coletivamente no quadro, para que os estudantes as retificassem em seu próprio caderno ou no do colega, quando era promovida uma troca desse material entre as crianças, seja assinalando individualmente em cada caderno ou folha de exercício os erros cometidos pelos estudantes, para que pudessem posteriormente refazer as atividades) foram sempre desenvolvidas levando em consideração as condições de realização dessas atividades pelos estudantes. Ela declarou em entrevista:
Nunca castiguei ou puni [referindo-se aos alunos] por não ter feito a tarefa de casa porque cada um é um caso. Tem criança que não faz não é porque ela não quer. Tem criança que é, mas eu não acho que deva punir…. Não consigo nem me imaginar punindo uma criança porque não fez uma tarefa de casa…. O X, por exemplo [criança que não costumava fazer as tarefas de casa], já provou pra mim que ele aprende, que é capaz. Parece que não é dele isso [fazer tarefas de casa]. Eu vou punir? Eu não! Eu sei que ele sabe.
Mesmo em relação aos estudantes que apresentavam necessidades específicas de aprendizagem, a professora Nina não adotou, ao longo do período em que se desenvolveu a pesquisa, medidas punitivas em relação às tarefas de casa não realizadas ou feitas de forma incorreta. Foram observados momentos em que ela estimulou os pais a deixarem que as crianças realizassem de forma autônoma as tarefas que enviava para casa. Era uma orientação para que os estudantes fizessem as tarefas da forma como conseguissem. Estava subentendido que ela aceitava tarefas não cumpridas, incompletas ou feitas de maneira incorreta. Ela aceitava o erro, as dificuldades e as impossibilidades de realização das tarefas pelas crianças.
Embora a professora Nina tenha adotado ações aparentemente democráticas tanto em relação ao encaminhamento de tarefas de casa diferenciadas quanto ao momento de analisá-las, considerando as condições sociais dos estudantes para a realização dessas atividades, o mesmo posicionamento não pôde ser observado em relação à escolha de algumas tarefas que, segundo ela mesma, necessitavam ser auxiliadas pelos pais. Nina afirmou em entrevista:
Tem tarefa que o aluno deve fazer sozinho, tem outras que ele vai precisar de ajuda. Nesse caso eu conto, sim, com a ajuda dos pais. O dever de casa não deve ser constituído só de tarefas que eles consigam fazer sozinhos, não. Às vezes a gente vai fazer uma tarefa e a gente precisa da opinião de alguma pessoa. Por que a criança não precisa?
Quando indagada sobre a situação das crianças que não podiam contar com essa ajuda, a professora declarou: “Quem não tem ajuda? Fica dando desculpa [para não realizar as tarefas], como a R, o W, o S”. No caso dessas crianças citadas pela professora, as necessidades evidenciadas em sala de aula poderiam estar sendo reforçadas pela impossibilidade de ajuda dos seus familiares na realização dos deveres de casa, quando esse auxílio era necessário. Mesmo não punindo as crianças pela não realização de atividades enviadas para casa, a professora parecia estar, ao solicitar tarefas para cuja realização necessitavam ser auxiliadas, criando situação de conflito entre a escola e os pais e prejudicando as que não contavam com o requerido recurso. Esta é uma questão delicada e que merece discussão pelas escolas.
Sobre a necessidade de auxílio dos pais/responsáveis à realização das tarefas de casa, conforme declarado pela professora Nina, vale destacar que esse posicionamento não foi constantemente percebido em sua prática. A afirmativa feita por ela logo no início do estudo de que “90% da aprendizagem da criança é responsabilidade da escola” pôde ser, em parte, confirmada pelas observações realizadas ao longo da pesquisa. Embora tenha afirmado considerar importante e necessário o suporte familiar para um bom desempenho escolar das crianças e requerido esse apoio junto aos pais/responsáveis, não foram observados momentos em que a professora apontasse falta de auxílio dos pais para justificar as dificuldades apresentadas por alguns de seus estudantes. Durante a reunião de pais ocorrida ao final do primeiro bimestre, Nina respondeu ao questionamento de uma mãe em relação ao modo como deveria proceder com o filho no acompanhamento das tarefas de casa, dizendo: “Eu até prefiro que deixem fazer do jeito deles para que eu identifique o que eles conseguiram [referindo-se às aprendizagens dos alunos]”.
Embora a professora estimulasse a realização autônoma do dever de casa, ela revelou não lhe atribuir muito valor:
O dever de casa na minha avaliação não pesa tanto não. Tem um peso, mas não é… eu diria aí de uns 30%. Sabe onde que eu avalio mesmo? Aqui. Não dá pra eu… não é verídico pra mim. Tem alunos que aprendem num piscar de olhos. Eles já até deixaram de fazer tarefa de casa. Se são crianças que eu sei que são espertas e que elas aprendem… mas eu vejo isso é aqui. É como eu disse 70% da minha avaliação está aqui, eu andando… eu mexendo… eu olhando…
O caráter secundário atribuído ao dever de casa no processo avaliativo poderia também explicar o seu posicionamento referente à forma mais propícia de “correção” dessa tarefa. A análise do dever de casa era feita ora coletivamente, quando a professora “corrigia” no quadro e os estudantes faziam o mesmo em seu caderno ou no do colega, no caso de troca dos exercícios, ora individualmente, quando ela recolhia as atividades, assinalava os erros e devolvia às crianças, para que elas observassem as incorreções. Essas revisões não eram acompanhadas de perto pela professora. Eram também feitas fora do período de aula, ou seja, eram também tarefas de casa.
Quando indagada sobre a forma mais adequada de “correção” do dever de casa, a professora assim se posicionou:
Não acho que tenha uma forma que seja mais correta que a outra, não. Eu já percebi que eles adoram trocar de caderno aí o outro fica preocupado se está acertando. Agora eu estou trocando por grupos, porque se sentar perto e ficar corrigindo o meu [referindo-se ao aluno] eu quero ver se está corrigindo certo, entendeu? Eles são sinceros na correção do caderno do colega. Então eu me sinto à vontade de fazer isso, mas eu faço isso olhando se ele [o aluno] realmente corrigiu. Mesmo eu corrigindo sozinha, não é o ideal, porque esbarra naquela mesma história eu não sei como foi feito. Eu sei quem são os alunos que têm dificuldade. Ela [a tarefa de casa] só confirma mesmo o que eu tenho visto em sala.
As próprias estratégias adotadas pela professora Nina para analisar as tarefas de casa poderiam estar contribuindo para a pouca relevância que lhes concedia no processo avaliativo que desenvolvia. Nenhuma das maneiras utilizadas pela docente para analisar as tarefas de casa envolveu, de maneira efetiva, a participação dos estudantes. Por mais que lhes tenha sido concedida a oportunidade de dizer oralmente as respostas dadas aos exercícios, como ocorreu no caso das análises coletivas, as crianças não tinham a oportunidade de elaborar suas ideias. Importava dar as respostas. A ênfase era colocada nos resultados. Perdia-se a oportunidade de fazer intervenções que se estendessem a todos os que dela precisavam. A análise de deveres de casa precisa abandonar a estratégia de “correção” das atividades de maneira padronizada e quase sempre no início da aula. Na perspectiva da avaliação formativa esse momento e sua dinâmica são criados pelo professor com a participação dos estudantes e de seus responsáveis pelo fato de envolvê-los diretamente. O envolvimento dos estudantes e dos pais no planejamento dessa atividade pode lhe dar feição agradável, ao mesmo tempo em que lhes atribui responsabilidade. Instala-se, assim, a prática pedagógica reflexiva e compartilhada, por meio da qual todos acabam aprendendo. Méndez (2002, p. 115) nos ajuda a compreender que “a avaliação e a informação na qual se baseia devem levar o professor a conhecer o ponto de vista do aluno e tê-lo em conta no momento de tomar decisões”. Conhecer as percepções dos pais/responsáveis também é importante.
Também na perspectiva da avaliação formativa, cabe entender que o dever de casa não é “corrigido”, o que pressupõe a existência de erro, mas analisado e apreciado por professores, estudantes e pais.
A professora Nina prescrevia tarefas de casa quatro dias na semana. Em cada aula cerca de 40 minutos eram destinados à análise das tarefas realizadas, à anotação pelas crianças das tarefas para o dia seguinte e à orientação para desenvolvê-las (totalizando mais de 106 horas de aula durante o ano letivo). Esse fato não condiz com a inexpressividade por ela atribuída a essas atividades como fonte de informação para sua prática avaliativa, uma vez entendido que avaliação e aprendizagem caminham lado a lado.
Ao ser indagada a esse respeito, a professora Nina afirmou utilizar-se rotineiramente do dever de casa com outro objetivo:
Eu acredito que a tarefa de casa contribui para que a criança crie uma rotina de estudo, tenha um vínculo com a escola em casa. Acho que ele [o aluno] deve ter esse compromisso com a escola.
Talvez pelo fato de a professora nunca ter parado para pensar sobre os deveres de casa ela não considerasse que eles integravam o processo avaliativo e entendesse que sua contribuição se restringia a criar vínculo com a escola. Mesmo assim, os seus depoimentos, em seu conjunto, parecem indicar que os deveres de casa se aproximavam dos preceitos da avaliação formativa.
Reflexões finais
O dever de casa tem sido uma prática inquestionável. Tornou-se natural adotá-lo. Na escola onde realizamos a pesquisa ele não era objeto de discussão entre as equipes pedagógicas e entre estas e os pais. Pareceu-nos que também os estudantes não sabiam qual o seu propósito. A professora da turma do 3º ano revelou nunca ter parado para pensar sobre ele. A escola também não se dedicou a discutir sobre essa prática. No entanto, ele ocupava parte considerável do tempo escolar. Por meio dele a professora mantinha ligação com os pais. Percebemos que havia ausência de entendimento sobre o papel e as implicações do dever de casa. Bem situado no trabalho pedagógico, composto por atividades significativas e criativas e em doses razoáveis, assim como bem compreendido por todos na escola, incluindo-se os pais, pode ser um facilitador da inclusão de todos os estudantes nas aprendizagens. Se não for uma atividade mecânica e sem sentido e se for impregnado de criatividade, poderá ser prazeroso e contribuir para a ampliação das aprendizagens.
O que nos inquieta é que a escola ainda não demonstra estar preparada para identificar, enfrentar e resolver as possíveis fragilidades apresentadas pela prática dos deveres de casa. O fato de a professora admitir nunca ter parado para pensar sobre esse tema significa que ele não era considerado objetivamente em seu planejamento. Não se analisavam aspectos como: por que e para que o dever de casa? Que tipo de atividades usar? Que quantidade usar? Em todos os dias da semana? Quais informações ele oferecia? Como envolver os pais nessa tarefa? Como avaliá-lo? Como os estudantes se sentiam realizando tais tarefas? Quais estudantes eram e não eram beneficiados pelo dever de casa? Como utilizá-lo sem promover desigualdades? Quais as suas vantagens e desvantagens?
Quando era promovida troca de cadernos ou exercícios entre os estudantes, os momentos de análise do dever de casa na turma costumavam favorecer as aprendizagens. Essa incorporação de todos à avaliação é uma estratégia que pode ser benéfica porque, ao participarem da avaliação das atividades, os estudantes podem observar e comprovar como os demais raciocinam e respondem, o que lhes possibilita aprender com os colegas. Nesse contexto se dá a autoavaliação e a coavaliação (MENDÉZ, 2002, p. 121). Percebe-se, assim, que os deveres de casa, adotados de forma planejada e reflexiva, têm contribuição a oferecer.
Como na turma investigada não se requeria a aplicação de provas, o uso constante do dever de casa pode ser interpretado como um mecanismo de controle e de prestação de contas aos pais. Não podemos afirmar categoricamente que isso tenha acorrido. Outras pesquisas precisam investigar tal fato.
Parece-nos que o dever de casa tem sido uma prática inquestionável, em parte, por estar ausente dos programas dos cursos de formação de educadores. Não conhecemos disciplinas desses cursos que o incluam como reflexão pelos futuros educadores. Deveria ser um tema obrigatório na disciplina Didática, já que ela volta-se para a organização do trabalho pedagógico da escola e da sala de aula.
Desenvolver o trabalho pedagógico que fuja a padronizações e a processos avaliativos classificatórios e excludentes pode ser um meio de formar cidadãos capazes de pensar autonomamente. Na apresentação do livro Fundamentos da escola do trabalho, de Pistrak, Caldart (2000, p. 8) afirma que sua maior contribuição foi ter compreendido que para transformar a escola, e para colocá-la a serviço da transformação social, não basta alterar os conteúdos nela ensinados. É preciso mudar o jeito da escola, suas práticas e sua estrutura de organização e funcionamento, tornando-a coerente com os novos objetivos de formação dos cidadãos, capazes de participar ativamente do processo de construção da nova sociedade.
O dever de casa é uma das práticas educacionais mais tradicionais. Mudar o jeito da escola inclui compreender o seu papel e decidir sobre a sua adoção ou não. No caso de ele continuar a ser usado, cabe repensar em que bases isso será feito.
Referências
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NOGUEIRA, M. G. Tarefa de Casa: uma violência consentida? São Paulo-SP: Loyola, 2002.
PISTRAK, M. M. Fundamentos da escola do Trabalho. Trad. Daniel Aarão Filho. São Paulo-SP: Expressão Popular, 2000.
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VATTEROTT, C. Five hallmarks of good homework. Educational leadership. Alexandria, Vancouver, september, 2010.
VILLAS BOAS, B. M. de F.. As práticas avaliativas e a organização do trabalho pedagógico. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas. Campinas-SP: 1993.